Capítulo 1

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1948

Jasper encostou-se à parede de uma casa de madeira, protegendo-se da chuva por meio dos telhados sobressalentes.

Mirou o céu, cerrando imperceptivelmente os olhos vermelhos. Detestava aqueles olhos, mas faziam parte de sua natureza agora. Engoliu um suspiro resignado.

As nuvens escuras tomavam conta do horizonte, deixando cinza o tapete outrora azul, e dando-lhe a capacidade de se mover durante o dia sem chamar a atenção. O único contra seria a chuva, mas para um homem que fora o mais novo major do exército confederado - humano -, que havia sido o segundo em comando de um outro exército - esse de vampiros recém-criados - e com o poder de definir quem viveria e quem morreria naquele grupo, uma chuva era quase motivo de riso. E também não era como se pudesse ficar doente.

A dor o atingiu. Fome.

Cerrando a mandíbula, ele prendeu a respiração. Haviam tantos humanos, ele poderia simplesmente matar todos e acalmar a onda violenta em seu estômago, apenas mais uma vez.

Não.

Balançou a cabeça. Péssimo movimento, agora ele estava contra o vento e sabia que se respirasse, estaria sentindo todos os cheiros de comida. Quase grunindo de frustração, Jasper virou-se, os cabelos loiros caindo-lhe sobre os olhos, fugindo do chapéu de aba usado para esconder a pele pálida e o olhar carmesim. Precisava sair dali, urgentemente. Ele não era um monstro, não mais. Não suportaria sentir o terror de suas vítimas novamente. Já bastava o grupo de mulheres que abordara semana passada.

Seguiu a favor do vento, para longe dos humanos que cruzavam as ruas e adentravam os estabelecimentos. No entanto, para onde iria? Não é como se fosse ficar livre dos humanos em um raio de 3 km. Poderia correr, mas sua velocidade chamaria atenção indesejada, e a ideia era se misturar. Maldita hora que havia decidido sair de seu isolamento para testar sua resistência contra a fome. Agora pagava o preço.

Andou mais rápido, apenas uma leve alteração, nada espantoso. Ele poderia fazer isso. Ele conseguiria. Não  havia vencido guerras, assassinado culpados e inocentes, deixado seus amigos para trás e sobrevivido a uma existência infernal para perder uma luta contra si mesmo. Céus - se existissem -,  isso seria patético.

Ele continou, sentindo as emoções ao redor para se distrair. Euforia, medo, ansiedade, esperança, amor, impaciência. Jasper parou abruptamente. Todos ao seu redor estavam uma pilha de emoções, mas aquelas ondas vinham de um ponto específico. Uma única pessoa estava sentido tudo aquilo, praticamente ao mesmo tempo. E era tão intenso que ele quase deu um passo para trás.

Aprumou seus sentidos, querendo saber quem era a fonte daquele turbilhão. Quase lá, ele só precisava se concentrar mais um pouco. Ali. Em uma casa de chá na esquina. Concentrou sua audição, sua fonte teria que estar com alguém, não era possível ser tão intensa a menos que fosse perto de algo que a abalasse. Tentou enxergá-la à distância mas, apesar de ser um local razoavelmente aberto, com entradas largas e livre para o público, não conseguiu. Deveria estar em uma parte mais ao fundo, meio escondida das pessoas do lado de fora. Prestou mais atenção, querendo saber onde estava.

No entanto, no ponto em que sua fonte deveria estar, não havia um batimento cardíaco. Existiam muitos ao redor, mas não onde deveria existir. Concentrou-se mais. O som suave de um copo sendo girado nervosamente numa tampa de madeira, sapatos inquietos contra algo resistente, possivelmente madeira também. Definitivamente, sua fonte estava ali, apenas não tinha um coração batendo.

Jasper franziu as sobrancelhas. Seria outro vampiro? Mas... um vampiro no meio de tantas pessoas? Poucos se arriscariam a isso, como ele. Se estivesse procurando um bom lanche, poderia encontrar num canto mais discreto. Ou talvez estivesse recrutando. Poderia ser Maria? Ela certamente teria controle suficiente para ficar no meio de humanos sem atacar todos. Se não estivesse segurando a respiração antes, Jasper estaria segurando agora. Ele não queria reencontrar Maria. Já a tinha amado uma vez, e achara que poderia ser recíproco. Irônico que justo ele, capaz de perceber e controlar as emoções alheias, fosse enganado. Maria não o amava, ela precisava dele. E Jasper havia sido cego o bastante para acreditar nela. Mas não, não poderia ser Maria, porque a morena não era capaz daquela confusão intensa de emoções. Se havia uma coisa que tinha aprendido com a sua criadora, era que ela sabia controlar muito bem tudo o que sentia. Quem quer que fosse aquela criatura, metida entre humanos e cheia de impaciência, nunca seria a vampira que Jasper conhecera. Nem em mil anos.

Cansado de pensar nas hipóteses, o loiro ajeitou o chapéu. Não importava quem era, ele iria descobrir. E seria agora.

Andou com passos decididos até a casa de chá, entrando no estabelecimento e se dirigindo à parte mais funda do local. Mal passando das mesas iniciais, ele a viu.

A mulher estava sentada numa banqueta de madeira alta, o cabelo curto bem arrumado, preto contra a pele branca e parcialmente encoberto por um chapéu elegante. Olhos dourados, - e não vermelhos como ele esperava -, o encararam e a mulher sorriu. Foi um sorriso feliz, cheio, que ia de orelha a orelha. Sua expressão era quase élfica, com uma boca pequena e cheia, sobrancelhas delicadas e um nariz arrebitado. A morena se levantou, quase pulando da banqueta de empolgação. Tinha um corpo pequeno. Jasper franziu o cenho. Que diabos...?

Ela foi em sua direção, num andar que beirava o saltitante. Um vestido cheio de flores abraçava sua cintura, a saia reta balançando pesadamente em sua estrutura delicada e lembrando-lhe um casaco. Havia visto outras mulheres usando vestes parecidas.

Obviamente, era uma vampira. Era bonita demais para ser humana. E os olhos, embora não tão carmesins quanto os dele, eram de um tom tão incomum quanto. O dourado era muito intenso.

E, ah, ela parecia ansiosa. Ela parou diante dele, aumentando o sorriso. Os olhos já expressivos brilharam ainda mais.

Ele deveria ter se sentido ameaçado. Quem era ela afinal? Uma assassina?

--- Você demorou, Whitlock . --- A voz da pequena reverberou em seus ouvidos, delicada. Seu tom parecia quase repreensivo, mas havia uma nota de ternura evidente na sua voz.

Que raios?

--- Perdão?

Ela o conhecia? De onde? Jasper certamente se lembraria. Isso deveria tê-lo deixado em alerta, mas a ternura em sua voz o surpreendeu.

O sorriso dela aumentou, evidenciando os traços delicados do rosto. Falou numa alegria contida, o tom paciente. Isso o surpreendeu. Normalmente, outros vampiros o temiam. Ele tinha várias cicatrizes no corpo, espalhadas pelo rosto, pescoço, costas e braços. Isso servia de alertas a vampiros desconhecidos: ele era perigoso.

A vampira ignorou seus traços.

--- Sim, sei seu nome. Não, não te conheço. Pelo menos, não pessoalmente. Também não leio mentes, se é isso que está pensando. Aliás, meu nome é Alice e sou sua futura esposa. Você demorou. Quer sentar? --- Ela fez sinal para as mesas ao fundo, dando-lhe as costas e seguindo para as cadeiras, como se não tivesse lhe dito nada demais.

Simples assim.

Jasper ficou sem fala. Ele, um homem feito, um guerreiro treinado, ficou impotente diante de uma mulher que mal lhe alcançava o peito.

E que história era aquela de futura esposa?

                    ~*~
Ok, o que acharam???

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