Cada um ali carregava sua dor e Ian diria que eu tentava carregar a de todo mundo. Talvez ele tivesse razão, mas a verdade é que eu gostava de pensar nos outros, ouvir sobre suas ansiedades e esperanças. Agora a conversa depois do jantar era muito mais uma conversa do que antes. Eu falava cada vez menos e ouvia tudo. Adorava ouvir as histórias que meus amigos humanos contavam. Mas eu não fazia perguntas, deixava que falassem somente enquanto quisessem. Assim como as minhas, aquelas eram histórias de outras vidas...
Eu só me animava a fazer perguntas para Ian, como quando eu quis saber porque ele e Kyle eram tão diferentes. “É por causa da minha mãe”, ele disse, com olhos que partiram meu coração:
– Quando ela morreu, ele tinha mais ou menos a idade de Jamie. Ele não soube muito bem lidar com a perda e meu pai não soube como lidar com a própria dor e com a dele. Eu consegui sobreviver pensando nas lembranças boas, em tudo o que ela tinha me ensinado... Mas isso só foi o suficiente para mim, não consegui ajudar meu pai ou Kyle.
Estávamos sentados no meio do milharal e ele apoiou a cabeça no meu ombro. Eu acariciei o rosto dele e senti muito, porque percebi que não podia aliviar o fardo dessa tristeza. Então, pedi pelas lembranças boas:
– Me fale mais sobre ela.
A mãe de Ian era uma mulher muito doce, que gostava de artes e de dançar. Era uma dona de casa e cozinheira de mão cheia e só ela conseguia suavizar as asperezas do marido. Foi dela que Ian herdou seus lindos olhos de safira e sua compaixão. Alice, esse era o nome dela, gostava de cuidar muito bem de todos que amava.
– Às vezes você me faz lembrar dela – ele disse com o olhar em outro lugar, em outra época.
Ela morreu de um problema cardíaco, de “um coração bom demais para esse mundo”, como Ian dizia e isso devastou a família. Eu consegui imaginar isso, porque compartilhei os sentimentos de Melanie por seus pais perdidos e também sentia essa saudade inexplicável da mulher que fora mãe de Pet e entendi um pouco da revolta de Kyle. Nos raros momentos em que Ian perdia o controle eu tinha também um vislumbre dessa dor nele.
A força e a dureza que ele e Kyle compartilhavam foram moldadas pelos anos que se seguiram à morte da mãe, morando numa casa que já não conseguia ser um lar, onde esses três homens, dois deles apenas meninos, sofriam cada um à sua maneira, sem conseguir dividir a dor um com o outro. Mas o pai de Ian sempre achou força o suficiente para proteger os filhos e nunca deixou de se interessar por eles. Ele nunca desistiu de tentar reestruturar as coisas, nunca desistiu de tentar fazer com que Ian se abrisse ou que Kyle criasse juízo. Ele tinha ficado tão feliz quando o filho mais velho o apresentou a Jodi, cheio de esperanças de que uma nova mulher na vida de Kyle o fizesse mais sensível e afável.
Foi por isso que quando ele chegou em casa uma noite, desinteressado de tudo e “agindo como uma TV fora do ar”, eles logo estranharam. Eles notaram o brilho estranho nos olhos e uma cicatriz na parte de trás do pescoço que parecia antiga, mas que não tinha estado ali no dia anterior. Na vizinhança e no trabalho - os três trabalhavam na construção civil – eles já tinham notado aqueles olhos estranhos antes. Num dia seus colegas chegavam ao trabalho reclamando que a esposa, a mãe ou o chefe estavam agindo estranho e então, um ou dois dias depois, agiam como se tivessem tomado “uma injeção de arco-íris”, como Ian disse. Não pude deixar de achar interessante essa capacidade para metáforas estranhas que eu estava descobrindo nele, mas me forcei a voltar meu foco para o resto da história. Afinal, eu estava interessada.
Os dois irmãos conversaram bastante naquela noite e não conseguiram entender o que estava causando essas mudanças todas, mas já tinham observado e ouvido rumores. Sabiam que era questão de pouco tempo até serem “infectados” por aquilo também, o que quer que fosse. Então pegaram mochilas com algumas roupas, água e comida e partiram sem dizer nada ao pai. Sua intenção era procurar alguém que estivesse ainda normal, um médico talvez, e tentar achar “uma cura” antes de voltar para o pai.
Kyle dirigiu com Ian até a casa de Jodi, mas quando os faróis refletiram o prateado nos olhos dela enquanto ela estava no jardim da frente tirando compras do carro, Kyle continuou dirigindo e não falou nada por muitas horas, o rosto endurecido de dor e raiva. Nos dois dias que se seguiram, eles observavam atentamente a todos: os atendentes das lojas de conveniência onde pararam, os garçons nas lanchonetes de beira de estrada onde fizeram suas refeições, os recepcionistas dos hotéis baratos onde dormiram, todos tinham os mesmos olhos.
O rádio e a televisão transmitiam notícias estranhas, tudo parecia em perfeita ordem no mundo, o que simplesmente não era a ordem do mundo. E eles decidiram não mais confiar no que ouvissem no rádio do carro ou lessem nas manchetes dos jornais que vissem nas bancas.
Na manhã do terceiro dia, observaram amedrontados quando policiais de olhos prateados, as armas pendendo discretas em seus coldres, levaram um homem assustado que tinha adormecido num banco de praça. O homem gritava coisas sobre sua família e seus amigos que tinham sido possuídos, mas ninguém pareceu estranhar, observando a cena com seus olhos apáticos. Eles souberam ali que não podiam fazer nada para ajudá-lo, então se seguraram e simplesmente entraram de novo no carro e seguiram viagem.
Sem saber o que fazer, pois já não se arriscariam a entrar em um hospital para procurar médicos ou a uma delegacia para procurar ajuda, concluíram que era melhor evitar ao máximo as outras pessoas. Iriam dormir no carro, comprar comida sempre de madrugada, quando pouca gente estivesse por perto, e continuar viajando, até chegar a uma cidade sem contaminação. Se iam viajar, o melhor a fazer, concluíram, era ficar perto do deserto, provavelmente menos gente viajaria por aquelas estradas secundárias, e para lá seguiram.
Exaustos de tanto viajar, saíram da estrada à noite e procuraram um lugar discreto para estacionar e dormir. Confiaram que a escuridão os protegeria e que com o raiar do Sol acordariam e seguiriam viagem sem despertar maiores suspeitas. Exaustos como estavam, entretanto, não perceberam que as primeiras luzes do dia trouxeram um visitante que os acompanhava desde que estacionaram ali, segundo souberam depois.
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A Hospedeira - Depois da Chuva
FanficDepois de vários dias dormindo na sala de jogos, Peg teme mas ao mesmo tempo anseia por um pouco mais de privacidade com Ian. Ficamos sabendo um pouco mais sobre a história de Ian, sobre como foi para Peg estar em um novo corpo e sobre como ficou su...