Eu nunca fui uma pessoa de muita personalidade. As pessoas esperavam que eu fosse bonita, não que eu soubesse manter um dialogo ou ler e escrever. Meus pais se preocuparam em me ensinar a ser mais que um rostinho bonito, mas eu não me sentia assim. Eu me via como uma sopa insipida e sem sal, ou como um vestido sem cor. Uma pintura em branco.
Um grande vazio, um grande ninguém.
Claro que eu sabia que em alguma parte de mim, meu eu verdadeiro se escondia. Eu tinha vislumbres dele durante minha infancia. Tocava-o suavemente na minha adolescência. Nesses momentos, eu sentia odio. Raiva. Amargura. E era neles que eu me sentia...  Real.
Eu tinha medo. Medo de que aquilo fosse quem eu realmente era. Uma labareda de fogo vermelho e dourado, que servia apenas para queimar.
Perder minha familia me transformou. Eu não mais tinha vislumbres do meu ódio. Ele me cegava completamente. Não tocava suavemente a amargura. Eu me banhava nela e a deixava me acariciar por horas a fio.
Não tinha medo de deixar a labareda queimar.
Maia se afastou de mim aos poucos. Não acho que por causa da minha brusca mudança de personalidade, e sim porque histórias sobre a maldição se espalhavam pela vila, e depois pelo mundo. Uma vantagem disso tudo era que as visitas pararam. Ninguém vinha me observar ou criar pinturas e esculturas. Eu andava livre pelas ruas sem me preocupar em manter uma expressão agradável. Na verdade, eu fazia questão de demonstrar com meu rosto todos os demonios que me habitavam.
Podemos dizer que eu liberei minha vadia interior.
E os deuses sabem o quanto ela queria permanecer livre.
A comunidade cochichava coisas aleatórias em relação a minha maldição enquanto eu passava. Eles queriam que eu me entregasse logo para não arriscar a vida de todos atraindo a fúria de Afrodite. A cada dia os sussurros ficavam mais altos e tambem mais crueis.
Ate que começaram a atirar coisas em mim enquanto eu passava. Frutas podres, pedras, o que estivesse a mão. Com esse novo tratamento vieram as pinturas. Palavras de ódio escritas em várias línguas.
Eu apenas entrava em casa e usava o resto das economias dos meus pais para me sustentar. As coisas estavam dificeis. Precisei vender meus vestidos e os tapetes da casa, mas ninguém queria comprar. Chamavam de "objetos amaldiçoados". Comprar algo de mim seria, aos olhos deles, como abrir a caixa de Pandora.
Os meses passaram e eu escolhia todos os dias entre comer ou comprar sapatos novos. Fiquei descalça. Depois entre comer e comprar um agasalho. Fiquei com frio. Entre comer e manter a casa. Fui morar na rua.
Não era facil, mas era possível. E na sarjeta  eu podia planejar. Pensar em tudo que eu faria para destruir Afrodite quando o momento chegasse. Se é que chegaria.
Em minha posse, nada me restava. Nada além da carta de minha mãe. Eu nunca mais a abri. Doía demais.
Ate que um dia eu precisei escolher entre não comer e perder a esperança. Não havia mais dinheiro. O povo não me dava um centavo em piedade. Os que me ofereciam ajuda pediam meu corpo em troca. Preferi ficar sozinha. Minha única escolha era essa.
Ficar com fome ou perder a esperança.
Escolhi desistir. Com as mãos tremendo e as pernas firmes, subi a colina até o templo do deus da Morte.
O vento machucava minha pele e meu corpo parecia pesar duas toneladas, tal era a dificuldade das minhas pernas em subir. Dentes cerrados e olhos ardendo pelo frio ou pela vontade de chorar, eu nem sabia mais. Assim dei cada passo doloroso ate o topo.
O tempo era simples. Quatro torres de madeira negra formavam um quadrado. No centro uma pedra negra servia para depositar oferendas. Sem teto ou piso. Entre os quatro pilares gigantes a grama crescia mais verde e forte, observei intrigada.
Cambaleei fraca até a pedra e a toquei com minha mão fria.
Nada aconteceu.
Rindo ironicamente deslizei por ela até o chão.
Minha vida patetica terminava ali e uma nova começava.
Deitada em parte sobre a grama verde e cheirosa e em parte sobre a pedra gelada eu imaginava que seria uma vida de terrores e medo.
Mal sabia que seria uma vida de estrelas e noites aconchegantes.

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