O tempo passou e nada aconteceu. Nenhuma presença divina ou sinal dos céus. Apenas eu, sentada na grama me escorando na pedra de sacrificio. Eu não tinha motivo ou força para voltar à vila então apenas fiquei por lá, vendo as horas passarem.
O vento agitava meu cabelo em uma dança de movimentos aleatórios e as ultimas frestas de luz do sol iluminavam os fios antes dourados, agora escurecidos pela sujeira. Percebi indiferente o quão decrépita eu estava. Era com tédio que eu encarava as solas dos meus pés encardidas e cheias de pequenas marcas causadas pelos cascalhos em que pisei subindo a montanha. Alguns fiapos de grama estavam grudados em minhas coxas e uma formiga andava preguiçosamente entre eles, causando uma sensação engraçada na minha pele.
— Não vai tirar ela daí?
Uma voz suave preencheu meus ouvidos. Não precisei erguer a cabeça. Minha punição havia chegado para me buscar.
— Não tem por quê.
— Ela pode te morder.
— Você tambem, até onde eu sei.
Ergui os olhos para o estranho sentado ao meu lado na grama. Como ele havia chegado ali sem me alertar era um mistério.
Ele tinha olhos negros e profundos, sobrancelhas e cabelos cacheados da mesma cor. Seu rosto tinha traços fortes,  com sua mandibula quadrada e lábios bem desenhados. Aparentemente era muito alto, dado suas pernas e braços longos. Seu corpo era magro e forte, e por trás de suas costas um par de asas da cor do céu noturno se estendia. Eram enormes,  de um azul tao escuro que tocava o preto. Pareciam muito com as asas dos morcegos que povoavam as noites na vila.
Ele sorriu, e vi que seus olhos tambem me analisavam.
— Você é a mortal que Afrodite tanto odeia.
— Não tão mortal assim.
Seu sorriso sumiu um pouco.
— Sim. As Parcas e o Destino cederam à ameaça de Afrodite.
Ele estendeu a mão e agarrou a formiga em minha perna. Olhou pra ela por uns segundos e a depositou no chão com cuidado.
— Você vai me torturar ou algo assim? Afrodite com certeza fez suas exigências.
— Eu não respondo a ela. Você não será ferida.
— Mas ela pediu.
— Sim.
— Você não é de falar muito.
— Não.
Apertei os lábios para conter a vontade de sorrir.
O Sol ja estava quase desaparecendo no horizonte e me perguntei se algum dia eu o veria novamente.
— Vai me levar ao mundo inferior?
— Não. Esse é o lugar dos mortos e de Hades.
— Ao Olimpo então?
— Também não. Eu não sou bem vindo lá.
— Porque? 
— Os vivos me culpam por seus entes que ja partiram.
Enquanto ele observava o horizonte aproveitei para encarar seu rosto. Não havia tristeza em sua expressão. Apenas tranquilidade.
— Mas você é só um mensageiro não é? Não faz sentido te culpar.
— Muito menos me pedir para evitar a morte de alguém. 
— Então você vive em outro lugar.
— Sim. Mas ainda não é hora. Você deve se despedir desse lugar. Não o verá em algum tempo.
— Não ha do que me despedir. Você disse que Afrodite pediu que me torturasse. Ela queria algo mais?
— A primeira oferta dela foi que me matasse e em troca ela me daria o maior amor que alguém poderia viver. Você tinha 7 anos na época. Eu não assassinaria uma criança. Depois disso ela, como medida provisória, fez com que nenhum homem ou mulher pudesse te amar. Quando você completou 13 anos ela tentou novamente. Pediu dessa vez que eu a levasse para longe e a machucasse. Eu recusei. Então ela foi ate Destino e as Parcas e disse que se você algum dia morresse, ela iria remover todo o amor dos deuses e da humanidade. Assim, ninguém teria razão para viver e o mundo entraria em caos. A ameaça funcionou e uma nova maldição foi lançada sobre você. Viver para sempre e sem amor.
Cutiquei um furo no tecido do meu vestido e perguntei:
— Apenas isso?
— Não. Ela também queria vingança pois eu havia rejeitado suas ofertas.
— E como ela está punindo você?
— Na verdade ela está punindo nós dois.
— Mais uma maldição sobre mim?
Um pouco de medo tocou meu coração. Eu não sabia quanto mais poderia aguentar.
Ele deu um sorriso triste e ergueu a manga da blusa branca de linho que usava,  expondo uma ferida minuscula em forma de estrela.
— Talvez seja. Talvez não. Ela me fez te amar.
Engolindo em seco olhei novamente para a ferida em seu braço.
— A flecha do Cupido.

.........





Acima do céu
Cupido subiu as escadas para o templo trêmulo.
— Está feito minha senhora.
— Conseguiu atingi-lo?
— As asas dele eram mais fortes que as minhas, mas a minha mira foi precisa.
— Perfeito.
— Eu não entendo. Porque fazê-lo amá-la? A senhora não desejava que ele a machucasse?
— Ele vai. O amor é veneno quando colocado no coração de quem não sabe usá-lo. Thânatos foi gerado da pura Noite. Não tem pais ou irmãos. Nunca foi amado. Ele não sabe amar. Ele agarrará esse sentimento com força e desespero e isso sufocará Psiquê.
— Como quando amamos muito um pássaro e ao abraçá-lo o esmagamos.
— Exatamente. Psiquê será esmagada até o fim dos tempos.
Cupido concordou com a cabeça e baixou os olhos. Aquilo era errado em tantas maneiras diferentes.
O amor deveria ser puro. Uma paz necessaria para abrigar os amantes quando a vida fosse pesada demais. Se o amor tambem se torna um peso... Então os amantes são esmagados. Assim como Afrodite planejava.
Secretamente Cupido desejou que Thânatos soubesse amar. Que ele soubesse que o certo é cultivar a flor para sentir seu cheiro todos os dias,  e não arrancá-la do chão.
Com o coração apertado ele se retirou da presença da deusa e voltou ao trabalho.

Contos Inacabados Onde histórias criam vida. Descubra agora