Capítulo 4 ("dezesseis")

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Capitulo 4

São três e quinze da madrugada. A hora em que os demônios, os fantasmas e os anjos perambulam pela Terra; este é o pico dos sonhos; aquela famosa hora em que você tenta correr e não consegue, ou tenta gritar e não tem voz. E os protagonistas desta história não se safarão deste horário. Com o tronco para cima, é possível sonhar, dizem os mais velhos. Pois bem, cada um na sua cama, conectados num mesmo sono, num mesmo transe, sonhavam um com o outro. Ouvir Ed Sheeran: Perfect. No sonho, Maria está sozinha num quarto muito claro. Entra muita luz do sol. É de manhã, mas ela acabara de chegar. Não sabe como e nem porque está ali, mas lá foi parar. Observa tudo à sua volta. Era um quarto branco, de arquitetura grega, com uma cama suspensa por cordas revestidas de plantas trepadeiras com gardénias por todos os lados. As gardénias exalavam o perfume de Maria, e por isso Estêvão sonhava com elas, mas aos olhos da Maria, eram tulipas vermelhas. Na cama, lençóis de cetim brancos. Travesseiros com penas de cisnes, e o colchão tinha a textura das nuvens. Da janela via-se o mar azul e o céu. Só isso. Não havia paisagem, não havia mais casas, não havia mais nada. O quarto viajava na brisa, no ar. De repente, Estêvão está no quarto eles vestem roupas finas e frescas, mas estas eram azuis. Nada sob o leve tecido, só os corpos quentes. Podia notar-se o peitoral de Estêvão e os seios de Maria que ela não se apressava em esconder. No sonho o pudor não existia e não fazia falta estar. Ele aproxima-se dela e acaricia-lhe os cabelos; ela toca-lhe o rosto com os olhos fincados aos dele; eles chegam-se mais perto e tocam os rostos, não há lábios, não há toques mais candentes. As mãos encontram-se junto ao coração e eles fecham os olhos. Estão em silêncio, não é preciso dizer nada. A luz do sol que invadia a janela, ilumina-os com os seus raios, como se estivessem sob os holofotes de uma peça romântica num anfiteatro. Não existia mundo, não existia fim. De repente, há um eclipse. Saturno tapa o sol, mas como pode Saturno tapar o sol? É um sonho. Ele passa devagar e a luz volta, mas agora eles estão despidos sob a claridade. Ele não conseguia ver-lhe as virtudes e ela também não. Por alguma razão o seu cérebro não conseguia inventar as formas dos seus corpos, só lhes resta o toque para sentir a forma, mas a claridade que os veste faz os seus corpos terem a densidade de uma nuvem. Não podem ser sentidos ou tocados, nem as mãos eles já sentiam. O despertador toca e eles acordam assustados e arrepiados.

Maria – O que está acontecendo? O que está acontecendo?

Estêvão – O que está acontecendo?... O que está acontecendo?

Estavam confusos, pobres coitados. Sentiam um aperto no peito, um vazio como se fossem metades afastadas. É possível o amor à primeira vista? Não será mais uma lenda urbana ou um conto desses que se lê naqueles livros pequenos com a capa de couro, esquecidos numa biblioteca antiga, de arquitetura em mármore e longas escadarias, com gárgulas nas periferias da estrutura? Parece um sopro de pensamento ingênuo, fruto da imaginação de duas crianças que brincam à beira do lago da casa dos avós no verão. Era quase um pecado ainda não estarem juntos. É como se o destino estivesse impaciente com a sua hesitação insolente. Era uma ordem do universo, uma obrigação que lhes foi delegada e deve ser cumprida o quanto antes. Não existe e não existirão outros, nem possíveis, nem "talvezes", nem prováveis, nem quem "deras". Não existem outras pessoas para eles, senão eles mesmos. De repente, Fabiola desaparece da memória de Estêvão como se ela nunca tivesse existido na Terra, e ele simplesmente esquece o insignificante detalhe entre ele e o amor da sua vida. Estava tão seguro daquele sentimento como a força dos ventos nas velas das naus que atravessaram os oceanos em busca de um novo mundo. Era certeiro, um caso encerrado. Não havia o que se pensar muito sobre aquele assunto. Fabiola é já um livro de couro. E poderíamos pensar, num súbito de machismo que esta é a chave para a Fabiola que conheceremos mais tarde, só que as nossas mentes pequeninas e estúpidas estão enganadas. Fabiola endureceu pelo mesmo motivo que Maria endurecerá, mas ainda não é momento de contar esta parte da história. O nosso Estêvão já começa a planear a melhor maneira de dizer à noiva, tão só um dia depois do pedido, que já não mais haverá cerimônia, e o motivo é simples de explicar e complexo de compreender. Ele chega à empresa com um olhar aluado. O mesmo se via nos olhos da sua donzela. Ouvir Ed Sheeran: Perfect. Ele entra no escritório e já lá estava ela, prontamente a arrumar a sua mesa. Um singelo cruzamento de olhares foi o bastante para saberem que o sonho era mútuo. Eles queriam-se, desejavam-se. Estêvão, acanhado, avança com a maleta, que ele quase não aguenta segurar firme. Ora, nem um "bom dia" ouve-se. Era tal silêncio que podia-se ouvir os corações acelerados. Maria vai em direção à porta e ele agarra a sua pequenina mão, mas estão de costas um para o outro. Era tão estranho quilo tudo... Estêvão vira-se com as sobrancelhas franzidas, um olhar de desolação. Ele quase que lhe pedia clemencia. As lágrimas vêm para Maria, e ela tem os olhos molhados, mas nada escorre.

La Madrastra - A história que não contaramWhere stories live. Discover now