Peônia

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Tord

Não nos odiávamos, mas certamente não éramos tão amigos quanto gostaria que fôssemos.

Fazem três dias que meu novo colega de quarto chegou, ocupando o espaço vazio do outro lado da perturbadora cortina de peixes, e nesse curto espaço de tempo consegui aprender pequenos detalhes sobre ele; as enfermeiras deste lugar são fofoqueiras, contando os detalhes sobre seus pacientes enquanto tragavam em seus cigarros.

Gostaria de os experimentar um dia, sei que não me fariam bem; porém em minha condição -que estava basicamente esperando o momento no qual me sentiria vivo, se este um dia chegasse- gostaria de experimentar o que o mundo teria guardado, seja essa experiência boa ou ruim.

Fitei novamente através da cortina de peixes, o seu nome era Tom, ele tinha dezesseis anos- como suspeitei- e havia parado aqui por "acidentes em casa", cenário bem diferente do que antes imaginara; ele não era um herói, mas certamente merecia mérito por fugir de algo que potencialmente poderia ter posto sua vida em risco.

Tenho um sentimento amargo por não poder conversar como gostaria, por me sentir sozinho; porém entendo o lado dele, também se sentiria estranho em sua condição.

Lembro-me dos primeiros dias nos quais fiquei aqui, sem me acostumar com o som dos passos recorrentes das enfermeiras para lá e para cá, sem totalmente me dar conta de que teria de me acostumar com cada agulha e picada que receberia.

Continuo meu olhar permanente para a cortina azul, será que ele tem medo? As vezes o pego distraído olhando para a janela, parece muito sereno nesses momentos, até que o menor dos barulhos o faz pular e agarrar firmemente aos lençóis da cama.

Ele me lembra do gato que vez por outra vem ao encontro dos residentes desse hospital, já sabemos quem o alimenta; a sua enfermeira favorita, seu pelo escuro e olhos claro como a grama fresca escondem sua interna covardia-ele pode parecer um grande predador pronto para atacar, contudo no final do dia é um gato assustado, no qual mimamos com bastante zelo.-

'Será que gosta de gatos?' Pergunto mentalmente ao retirar meu olhar da cortina, sinto como se os peixes estivessem me encarando, talvez devesse ir lá; não quero esconder-me, doí somente saber que ele está lá, bem em minha frente, frio e distante como a chuva, eu nunca gostei da chuva.

Nos dias em que eu podia senti-la, pelo menos, ela me dava uma bizarra sensação de medo;fria e em tamanha quantidade que me sentia a afogar, respirava sei que respirava; porém não conseguia sentir, algo me pressionava para baixo e me deixava ofegante até o momento no qual desistia de tentar respirar.

Esses dias eram os mais difíceis em casa.

Casa era uma palavra engraçada, eu tenho uma casa, mas eu não tenho um lar; me pergunto o que ele tem.

Suspiro ao me levantar, uma grande dor atingindo meu braço marcado por uma constelação de marcas de agulhas avermelhadas, são minha pequena vista do céu; outra das minhas grandes coisas.

Ao aproximar-se dele noto como seus olhos carregados com o infinito do espaço demonstram uma calma que poderia apenas descrever como sendo perturbadora, ele parece feliz por estar aqui! Não o entendo, não quero considerar a perspectiva de que alguém aproveitaria a estadia prolongada aqui!

Mas isso não me impede de uma chance para afastar tudo que tenho sentido, quero alguém para conversar; e não vou o dispensar somente por parecer tranquilo ou feliz.

Sento-me à beira de sua cama, suas mãos repetindo o ciclo que sempre fazem ao serem pegas de surpresa, ele agarra seus lençóis.

"Olá."
"Oi."

Espero por um momento, socializar nunca foi o meu forte, porém espero conseguir algo dessa interação.

"...huh...Gosta de gatos?" Falo, sinto meu estômago se revirar ao ritmo de fogos de artificio; socializar não deve ser tão difícil, não é?

"Gosto, na verdade, tem um?" Balanço minha cabeça negativamente. "Não posso os ter por aqui, na verdade não posso ter nenhum animal, mas tem um que vem de vez em nunca..."

"Huh."
"Huh..."

Agora é minha vez de apertar os lençóis brancos, deixando com que minhas mãos demonstrem para mim o que sinto, porque socializar tinha que ser tão estranho?!

Limpo minha garganta pondo meu sorriso em rosto, tento não ouvir as vozes no fundo da minha cabeça contando-me o quanto ele deve me achar estranho.

"E...de música?"
"Sim, gosto de música."
"Gosta..?"
"Na verdade até todo um baixo."

Cogito em pedi-lo uma musica, como aqueles garotos na televisão sentados ao redor da fogueira, contando histórias e cantando músicas que, certamente, são completamente diferentes da tal 'Sunshine, lollipops'!

Ranjo meus dentes ao lembrar da música, todo santo dia as três da tarde alguma enfermeira a põe, agora experimente ouvir isso até seus dezesseis e tem pura raiva.

Volto ao olhar para ele e percebo sua expressão de medo diante de minha raiva, seus olhos profundos fechados e suas mãos o protegendo-quase como um reflexo-.

"Acho que é hora de você voltar pra sua cama, cara."
"Tord, meu nome é Tord."

Ele me deixa em silêncio olhando novamente para a janela, o que fiz de errado? Volto a minha cama, os fogos de artifício apenas pioravam a cada passo que dava.

O que aconteceu com Tom?

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Hi.

Eu gostaria de agradecer o feedback que estou ganhando nessa história, obrigado pelas estrelinhas :'))

Capítulo meio sem nada, eu sei, mas tinha que fazer o menino Tord curioso para os eventos do próximo ;)

Só isso, chauzinho.

CamelliaOnde histórias criam vida. Descubra agora