Chamando os Complicados

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    Depois de vinte minutos de dança no sopé do Edifício San Pablo, o vendedor de sonhos pediu novamente silêncio para a multidão remanescente. Eufóricas, as pessoas pouco a pouco se aquietaram. Para o espanto de todos, ele proclamou um verso em voz alta, como se estivesse no alta, como se estivesse no alto de um monte:

   - Muitos dançam sobre o solo,
   Mas não na pista do autoconhecimento.
   São deuses que não reconhecem seus limites.
   Como poderão se achar se nunca se perderam?
   Como serão humanos se não se aproximam de si?
   Quem são vocês? Sim, digam-me, quem são?

   As pessoas ficaram com os olhos regalados. Elas haviam acabado de dançar numa pista improvisada, mas agora o promotor da festa introduzia uma outra pista e as questionava se eram humanas ou divinas. Vários homens bem-trajados, em especial aqueles que não haviam dançado e estavam na posição de críticos, ficaram atordoados. Diariamente estavam vidrados na cotação do dólar, nas cotações da bolsa de valores, em técnicas de liderança empresariais, em carros, hotéis, mas muitos jamais haviam dançado na pista do autoconhecimento, jamais haviam sido caminhantes no território psíquico.
   Viviam vazios, entediados, ansiosos, inundados de tranquilizantes. Não se humanizavam. Eram deuses que morriam um pouco a cada momento, eram deuses que negavam seus conflitos.
   Vendo a multidão silenciada, ele expandiu seu discurso:
   - Sem filosofar a vida, viverão na superfície. Não perceberam que a existência é como os raios solares que despontam solenemente na mais bela aurora e se despedem fatalmente no acaso. - Algums o aplaudiram sem entender sem entender a dimensão do seu raciocínio e sem perceber que estavam próximos do entardecer.
   Momentos depois, para minha surpresa, ele saiu cumprimentando pessoa por pessoa, indagando:
   - Quem é você? Qual é o seu grande sonho?
   Muitos ficavam constrangidos no primeiro momento. Não sabiam responder quem eram nem qual era seu grande sonho. Outros, mqis desinibidos e sinceros, diziam: "Não tenho sonhos", e justificavam: "Minha vida está uma merda!". Outros comentavam: "Vivo num atoleiro de dívidas. Como posso sonhar?", e ainda outros comentavam: "Meu trabalho é uma fonte de estresse. Tenho dores em todo o corpo. Esqueci de mim mesmo, só sei trabalhar". Fiquei impressionado com as respostas. Percebi que a plateia que estava assistindo ao meu "suicídio" não estava distante e minha miséria. A plateia e os atores viviam o mesmo drama.
   O mestre não tinha soluções mágicas para elas, queria instigá-las a se interiorizar e se repensar. Observando o deserto psíquico em que se encontravam, bradou:
   - Sem sonhos, os monstros que nos assediam, estejam eles alojados em nossa mente ou no terreno social, nos controlarão. O objetivo fundamental dos sonhos não é o sucesso, mas nos livrar do fantasma do conformismo.
   Uma jovem obesa, de cento e trinta quilos e um metro e oitenta de altura, ficou comovida com essas palavras. Sentia-se programada para ser rejeitada e infeliz. O fantasma do conformismo a dominava. Há anos tomava antidepressivos. Era pessimista e excessivamente crítica consigo mesma. Sempre se diminuía perante outras mulheres. Constrangida, aproximou-se do vendedor de sonhos e teve a coragem de se abrir num tom de voz que só alguns de nós ouvimos:
   - Sou um poço de trsiteza e solidão. Pode alguém não atraente um dia ser amado? Pode alguém não cortejado ter chance de encontrar um grande amor? - Ela sonhava em ser beijada, abraçada, querida, admirada, mas sua reação indicava que provavelmente fora ridicularizada, rechaçada, chamada por apelidos que só se dariam a animais. Sua ato-estima fora assassinada na sua infância, como a minha.
   Bartolomeu ouviu as palavras. Carente e esbaforindo álcool, balbuciou aos gritos:
   - Apetitosa! Belíssima! Maravilhosa! Se você procura um príncipe, o encontrou. Quem namorar comigo? - E abriu os braços. Para ele não cair, tive que apoiar o miserável. Ela sorriu, mas o bêbado desavergonhado era o último homem com o qual ela se envvolveria.
   O mestre olhou nos olhos dela. Condoído, respondeu-lhe:
   - É possível encontrar um grande amor. Só não se esqueça jamais que você poderá ter o melhor parceiro ao seu lado, mas será infeliz se não tiver um romance com a própria vida. - E orientou-a: - Contudo, para alcançá-lo, terá de deixar de ser escrava.
   - Escrava do quê? - indagou surpresa.
   - Dos padrões de beleza do sistema - afirmou.
   Algumas pessoas que o ouviram se animaram com suas palavras e comentaram que sonhavam superar sua timidez, solidão, fobias. Outras almejavam fazer amigos, mudar de trabalho, porque o dinheiro que ganhavam as contas não fechavam no final do mês. Outras diziam que sonhavam em fazer um curso superiro, mas não tinha recursos para isso.
   Elas esperavam um milagre, mas o vendedor de sonhos era um vendedor de ideias, um mercador de conhecimento. O conhecimento era melhor do que o ouro e a prata, encantava mais que diamantes e pérolas. Por isso, não estimulava o êxito pelo êxito. Para ele, não havia trajetórias sem percalços, nem oceanos sem tormentas. Fitando as pessoas, falou com segurança:
   - Se seus sonhos forem desejos e não projetos de vida, certamente vocês levaram para a sepultura seus conflitos. Sonhos sem projetos produzem pessoas frustradas, servas do sistema.
   E não deu explicações sobre esses pensamentos, pois queria que as pessoas dançasse na pista das ideias. Fiquei reflexivo. Vivemos numa sociedade consumista, numa sociedade de desejos, e não de projetos existenciais. Ninguém planeja ter amigos, ninguém planeja ser tolerante, superar fobias, ter um grande amor.
   - Se o acaso for nosso deus e os acidentes, nossos demônios, seremos infantis.
   Espantei-me ao olhat ao meu redor e perceber que o sistema socail havia feito um estrago irreparável em quase todos nós. Não poucas pessoas consumiam muito, mas eram autômatas, robotizadas, viviam seus propósitos, sem significado, sem metas, como especialistas em obedecer a ordens e não pensar, o que fazia aumentar o índice de transtornos psíquicos.
   Questionei-me também como educador: o que eu havia formado na universidade? Servos ou líderes? Autômatos ou pensadores? Mas antes de responder a essas perguntas me inqueitei com minha própria situação. Perguntei-me: ser crítico libertou-me da servidão? Concluí que não! Eu era um servo do meu pessimismo e da minha pseudo-independência. Estava levando para o túmulo meus conflitos. Interrompemdo meus pensamentos, o mestre comentou para sua plateia extasiada:
   - Conquistas sem riscos são sonhos sem méritos. Ninguém é digno dos sonhos se não usar suas derrotas para cultivá-los.
   Por estudat a história das riquezas das nações, entendi o significado sociológico desse último pensamento. Entendi que muitos dos que recebiam herança ou eram presenteados gratuitamente com fortunas haviam tido conquistas sem méritos, não valorizavam as batalhas dos seus pais, dissipavam seus bens como se fossem eternos. A herança se tornava um laço para uma vida dissoluta e superficial. Eles era imediatistas, queriam sorver o máximo prazer do presente, sem prever futuras tempestades.
   Enquanto eu criticava as pessoas como vítimas do sistema e não como autoras da sua história, num ímpeto voltei-me para mim e percebi que não era diferente delas. Não entendia por que pensamentos tão simpless eram tão penetrantes. Estudei complexas ideias do socialismo, mas elas não penentravam nas áreas ocultas da minha psique. Sonhei em ser uma pessoa feliz, mas tornei-me um miserável. Sonhei em viver uma vida melhor que a que meu pai viveu, mas reproduzi o que mais detestava nele. Sonhei em ser mais sociável que minha mãe, mas cultivava sua sisudez e amargura.
   Não usei minhas perdas para cultivar meus sonhos. Não fui digno deles. Detestava riscos, queria controlar tudo ao meu redor, pois não poderia comprometer minha brilhante reputação acadêmica. Tornei-me estéril por dentro, não engravidava de novas ideias. Esqueci que os grandes pensandores eram malucos que assumiam os riscos. Não poucos foram execrados, taxados de lunáticos, tidos como heréticos, transformados em espetáculo de vergonha social. Enfim, serviram de carne fresca para aves de rapina de plantão. Creio que eu era uma dessas aves predadoras.
   Até nas teses de mestrado e doutorado os riscos eram quase eliminados. Alguns dos meus colegas lutavam contra esse formalismo, mas eu os freava. Somente após seguir esse imprevisível vendedor de sonhos fui compreender que as grandes descobertas da ciência foram produzidas na juventude, no calor da rebeldia, e não na maturidade dos cientistas. Os formais recebem diplomas e aplausos, os desvairados produzem as ideias que eles utilizam.

O Vendedor de SonhosOnde histórias criam vida. Descubra agora