Nós defendíamos uma seita, facção ou paetifo político. Não fazíamos parte de um fundação nem constituímos uma organização oficial. Não tínhamos assistência social, não sabíamos onde dormiríamos nem o que comeríamos. Dependíamos das dádivas espontâneas das pessoas, e às vezes tomávamos banho em albergues coletivos. Éramos um bando de sonhadores que queriam mudar o mundo, pelo menos o nosso mundo. Todavia, não tínhamos enhuma garantia e mudaríamos alguma coisa ou se causaríamos mais confusão. Mas eu estava começando a achar a vida adorável, uma experiência sociológica agradável, embora saturada de incógnitas.
Algumas pessoas começavam a reconhecer o mestre por meio do noticiário da mídia. Elas interrompiam sua caminhada e sentiam necessidade de contar-lhe seus problemas. Ele as ouvia com prazer. Depois de minutos ou horas escutando-as, encorajava-as e animava-as a fazer escolhas, e entender que toda escolha traz frustrações e não apenas ganhos.
Aos poucos, foi acrescentando mais discípulos. Cada personagem era mais interessante que o outro. As andorinhas estavam aprendendo a bailar num sistema que queria tosar suas asas. Mas aprendíamos a não fazer grandes planos para o futuro. O futuro não nos pertencia. A vida era uma festa, embora o vinho sempre acabasse.
Aprendíamos a beijar pessoas idosas e sentir as marcas do tempo. Aprendíamos a prestar atenção nas crianças e nos deliciar com sua ingenuidade. Aprendíamos a conversar com mendigos e percorrer seus incríveis mundos. Padres, freiras, pastores, islamitas, budistas, suicidas, depressivos, fóbicos, havia tantas pessoas belas e interessantes ao nosso redor, mas elas estavam apenas nas estatísticas sociológicas.
Uma sensibilidade que nunca fora trabalhada em minha personalidade começava a me invadir, embora meu egoísmo dormitasse, mas não estivesse morto. Lembrei-me dos filmes de ação a que assistira. Neles sempre morriam inúmeros anônimos, míseros figurantes, pelas armas dos policiais, sem que nos déssemos conta de que cada anônimo na vida real possui um mundo indecifrável, com temores e amores, ousadias e covardias. Para o mestre, não havia figurantes na sociedade real. Ele exaltava os miseráveis, chamava-os para serem seus amigos íntimos. Os que viviam à margem do sistema ganharam notoriedade.
Quando pensava que minha sensibilidade eatava em alta, em "figurante" passou por minha vida e me fez ver que ela era ainda incipiente, precisava de muito combustível. Estávamos na Avenida Presidente Kennedy e de repente vimos um jovem de pouco mais de vinte anos, um metro e oitenta de altura, cabelo crespo, pele escura. Seu nome era Salomão Salles. Tinha gestos estranhos, capaz de cativar a atenção até das crianças. Mexio o pescoço agitadamente, flexionando os músculos trapézios para o lado esquerdo e para o alto. Piscava o olho várias vezes. Antes de entrar por uma porta, dava três pulos, pois se não o fizesse acreditava que alguém da sua família morreria. Era portador de um grave TOC (transtorno obsessivo-compulsivo).
Além de todos esses bizarros rituais compulsivos, o mais engraçado e mais estranho é que Salomão não podia ver um buraco, uma saliência, fosse nas paredes, muros, solo, móveis, que tinha o desejo de enfiar neles o dedo indicador direito. No extao momento em que o observamos, estava agachado, colocando o dedo em vários pequenos orifícios da calçada.
Os passantes debochavam dele. Sinceramente, não nos contivemos também. Tentávamos disfarçar nossas risadas. Pensávamos ter encontrado alguém com mais transtorno que todos nós. Mas o mestre não gostou da nossa reação. Virando a face, ele nos questionou:
-Esse jovem é mais frágil ou mais forte que nós? Qual o preço que paga por expressar sesu rituais em público? É um fraco ou é dotado de notável coragem? Não sei quanto a vocês vmas sem dúvida ele é mais forte que eu.
Calamo-nos, mas ele continuou:
- Quantas vezes vocês acham que esse jovem se sentiu no centro de um circo que não construiu, como agora? Quantas noites de insônia não teve, pensando nas gargalhadas dos andantes? Em quantas situações não foi aprisionado nos currais inumanos do preconceito? - E para nos fazer sentir ainda mais o odor fético da nossa discriminação, concluiu: - A crítica fere uma pessoa, o preconceito anula-a.
Sempre que analisava a psique dos outros, tivara nossa roupa, deixava-nos "nus". Descobri que mesmo pessoas como eu, que sempre defenderam os direitos humanos, são grosseiramente preconceituosas em algumas áreas, ainda que essa barbárie e manifeste sutilmente, num sorriso disfarçado ou numa silenciosa reação de indiferença. Somos piores que os vampiros. Matamos sem extrair o sangue.
- Se quiserem vender o sonho da solidariedade, terão de aprender a enxergar as lágrimas nunca choradas, as angústias nunca verbalizadas, os temores que nunca contraíram os músculos da face. Os que não desenvolvem tal característica terão traços de psicopatia ainda que vivam em ambientes insuspeitos, como os templos das universidades, ou os templos empresariais, políticos e religiosos. Pressionarão, ferirão, constrangerão, sem sentir a dor dos outros. Vocês fazem parte dessa estirpe? - nos indagou.
Tentei puxar o ar profundamente para ver se oxigenava meu intelecto. Teria eu traços de psicopatia? Os psicopatas clássicos são facilmente perceptíveis, mas os que têm traços sutis de psicopatia podem disfarçar sua insensibilidade até por trás de seus títulos acadêmicos, sua ética ou sua espiritualidade. Eu disfarçava.
Nunca procurei meu filho e lhe perguntei quais eram seus temores ou suas mais marcantes frustrações. Impus regras para João Marcos, lhe apontei erros, mas jamais vendi sonhos de que sou um ser humano que precisa conhecê-lo e precisa ser amado por ele. Nunca procurei um aluno que expressasse um ar de tristeza, irritabilidade ou indiferença. Para mim, os professores eram técnicos e não pessoas. Eles tiravam licença médica, e eu nunca os procurava. Meu débil estilo de vida se voltou contra mim como um bumerangue.
Quando eu pensava em desistir da vida, meu cálice emocional também se tornou invisível para meus colegas e alunos. Um intelectual como eu não podia declarar sua dor. Para eles, depressão era coisa de gente frágil. Ninguém enxergou a minha angústia desenhada clandestinamente no quadro de pintura do mej rosto. Estariam eles cegos ou era eu que não sabia demonstrar sentimentos? Não sei.
Como o mestre sempre nos alertou, ninguém é cem por cento vilão nem cem por cento vítima. Eu era insensível e estava rodeado de pessoas com baixo nível de sensibilidade. Não precisava de aplausos, louvor acadêmico, congratulações, precisava apenas de um ombro onde chorar, apenas sentir o cheiro de gente ao meu lado que me dissesse: "Estou aqui. Conte comigo".
Quando o mestre nos levou a enxergar a coragem e grandeza do jovem com TOC, ele nos fez um desafio.
- Vão vender sonhos para aquele jovem? - disse isso e se calou, esperando nossa reação.
Ficamos emudecidos. Depois de eternos segundos com um nó na garganta, sentíamos que estávamos perdidos. Era uma reação estranha para um bando de pessoas supostamente experientes. Não sabíamos o que dizer. Não sabíamos o que ele pensaria de nós. Havia alguns minutos nós o taxáramos de maluco, agora tínhamos medo de ser taxados de malucos por ele. Não é isso insanidade? Balançamos nos extremos com incrível frequência.
O mestre continuou calado. Seu silêncio nos desassossegava. Sabíamos debochar da desgraça dos outros, mas não aliviá-la. Éramos criativos em excluir, mas inábeis em incluir. Se alguém pedisse para o Milagreiro fazer uma longa e bombástica oração para o jovem, seria uma tarefa fácil, mas pedir para lhe vender sonhos o deixara sem ação. Se Bartolomeu estivesse alcoolizado e lhe pedissem para fazer amizade com o estranho, seria tranquilo, mas sóbrio era complicado. Se alguém pedisse para o Mão de Anjo ater sua carteira e depois devolvê-la para causar-lhe admiração, não haveria nenhuma dificuldade, mas cativá-lo com suas palavras era uma tarefa quase impossível.
Se me pedissem para dar uma aula a ele para mostrar minha cultura, eu não teria grande trabalho, mas conquistar um estranho, que é meu semelhante, sem usar o poder da informação, era-me uma tarefa dantesca. Eu sabua falar para grandes plateias, mas não sabia encantar um ser humano com o que sou. Fora treinado para falar de Kant, Hegel, Auguste Comte, Marx, mas não sobre mim. O sistema havia achincalhado nossa humanidade. E eu o alimentara.
Como não havia manual sobre a melhor maneira de vender sonhos para um obssessivo e como o mestre se recusou a dar orientações, lá fomos nós, inibidos. Eu, o mais culto da equipe, era o mais engessado. O Boquinha de Mel, mais surrado pela vida, agachou-se também e tentou enfiar as mãos nos buracos para tentar o primeiro contato. O sujeito deu risada dele. Bartolomeu se sentiu um tolo, e o jovem continuou seu ritual.
Edson não se aguentou, virou-se de costas e pôs as mãos na boca, fazendo um esforço temendo para sufocar as gargalhadas. De repente, o obssessivo se levantou e viu o orifício no centro da orelha de abano direita do Milagreiro. Num ímpeto ansioso, enfiou o dedo no ouvido dele. A reação do outri foi imediata. Deu um grito estridente, dizendo:
- Sai, demônio, que este corpo não te pertence!
Suas palavras assombraram Salomão. A indelicadeza foi grande. Caindo em si, pôs as mãos na cabeça e percebeu que mais uma vez mostrava sua viciada atitude de partir para o lado sobrenatural. Dessa vez, porém, ele fora longe demais. Quera expulsar do cérebro do jovem uma doença psíquica que estaca incrustada no inconsciente e no metabolismo cerebral.
Salomão, consternado, disse com sensibilidade para a plateia de insensíveis:
- Ja fui chamado de louco, psicótico, doido, demente, insano, maluco, pirado, mas de endemoninhado é a primeira vez.
Vendo que machucara o jovem com a mais alta ofensa, percebendo que no fundo não aceitava os diferentes e que estava vendendo pesadelos e não sonhos, Edson olhou para ele e disse-lhe, sem meias palavras:
- Desculpe-me. Realmente, desculpe-me. Fui profundamente indelicado, injusto, tolo e superficial. Acho que você é muito mais forte do que eu. Suporta o deboche público, enquanto eu procuro os aplausos.
Ficamos fascinados com as palavras honestas e corajosas do Edson. Enfim, começara a realizar um dos mais difíceis milagres, o da humanidade. Eu, como ele, jamais pedira desculpas para alguém, fosse quem fosse. Éramos pequenos deuses, eu no templo do conhecimento, ele no templo da espiritualidade. Começávamos a entender que, quando somos frágeis, aí é que nos tornamos fortes.
A partir desse momento nos desinibimos, nos apresentamos ao jovem e começamos a entrar nos capítulos da sua vida. Ele tentara cusar psicologia, mas teve de desistir, pois seus professores disseram que um obssessivo não poderia tratar de doentes mentais. Tentara a faculdade de direito, mas teve de desistir, pois seus professores disseram que um obssessivo com rituais tão histriônicos não poderia ser levado a sério por seus clientes, e muito menos fazer debates nos tribunais.
Não durava um trimestre em cada emprego. Ninguém queria dar oportunidade para alguém que parecia não controlar seu comportamento. Não conseguia namorar. Ninguém se interessava por um homem que era uma fonte de deboche. A exclusão tecia as vestes da sua existência. Todavia, era um ser humano fortíssimo, como o mestre previa. Apesar de enfrentar todo esse colar de dificuldades inexprimíveis, não se deprimia e muito menos pensara em tirar a própria vida, como eu. Tinha importantes conflitos, mas, excetuando os momentos em que se angustiava pelo sentimento de rejeição, aprendera a viver com alegria, curtia a vida. Vivia melhor que os discípulos. Nós é que precisávamos comprar seus sonhos, e ele sabia disso.
Entrar no mundo desse jovem foi uma viagem maravilhosa. Descobrimos um ser humano fantástico por trás de alguém socialmente ridicularizado. Após nossa viagem de descobrimento desse fascinante continente chamado Salomão, o mestre o chamou para vender sonhos.
Em seguida nos conduziu para um lugsr aberto. Não era uma praça, mas tinha algumas árvores; o ar ali era menos poluído. Nesse lugar nos falou de outro Salomão, o grande rei de Israel. Comentou que ele fora um jovem que tivera um excelente início de vida. Não queria ouro, prata nem poder político; queria o mais excelente tesouro, a sabedoria. Diariamente bebia e respirava sabedoria, e seu reino progrediu sobremaneira, tornando-se um dos primeiro çs impérios antigos. E a relação com as nações vizinhas era regada de paz.
Mas o tmpo passou, e o poder embriagou. Ele abandonou a sabedoria e começou a se envolver em inúmeráveis atividades. Além disso, de tuo o que seus olhos pediam ele se fartava, mas não se saciava. Por fim, deprimiu-se intensamente e teve a honestidade de dizer que tudo havia se tornado para ele uma fonte de tédio. Tudo era vaidade, nada nessa deslumbrante existência o animava. Após esse relato, o mestre completou seu ensinamento:
- O grande rei teve centenas de mulheres, carros, palácios, serviçais, exércitos, vestes de ouro, honras e vitórias como raramente algum outro rei o fez, mas se esqueceu de amar uma mulher, e de prestar atenção nos pequenos lírios dos campos, que representam a amizade e tantas outras coisas fundamentais.
Quando ia descorrer sobre a última lição, entrou meu imprevisível companheiro e mais uma vez todo mundo se esborrachar de rir.
- Chefinho, dá licença? - disse Boquinha de Mel.
- Diga, Bartolomeu - falou ele pacientemente.
- Será que Salomão se deprimiu porque teve centenas de sogras?
Rindo da espontaneidade de Bartolomeu, o mestre respondeu-lhe uma fina espetada:
- Não sei, mas sei que há sogras mais amáveis que muitas mães.- E arrematou com esta lição: - O sucesso é mais difícil de trabalhar que o fracasso. Como ocorreu com Salomão, o risco do sucesso é a pessoa se tornar uma máquina de atividades, esquecer o sabor das diminutas coisas e abandonar aquilo que só os sonhos podem alcançar. A paisagem de uma fazenda, de um jardim, de um qiadro, pode excitar mais a emoção de observador do que a de seu proprietário. Deus democratizou o acesso aos melhores prazeres da existência. Riscos são os procuram esse tesouro, miseráveis são os que pensavam possuí-lo.
E colocando as mãos em Salomão, o mais novo discípulo, ele o exaltou:
- Os grandes seres humanos estão à margem da sociedade. Aqui está alguém que tm muito pouco, mas tem tudo. Obrigado por nos vender seus sonhos.
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O Vendedor de Sonhos
No FicciónUm homem maltrapilho e desconhecido tenta impedir que um intelectual se suicide. um desafio que nem a polícia nem um famoso psiquiatra tinham sido capazes de resolver. depois de abalá-lo e resgatá-lo, esse homem, de quem ninguém sabe a origem, o nom...