A Superioridade das Mulheres

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   Nos dias que se seguiram, estávamos vivendo um céu de brigadeiro. Nenhuma tempestade no ar. Nenhum percalço social. Nenhuma rejeição. Desfrutávamos de prestígio, assédio e reconhecimento social. Nada mal para quem desfiava o poderoso sistema e morava em lugares inóspitos. Não imaginávamos o que viria pela frente.
   Quando tudo trancorria em perfeita harmonia, mais uma vez o mestre nos assombrou. Convidou-nos para ir ao mais charmoso dos templos, o templo da moda, o mundo fashion. Estava havendo no lado sul da cidade um requintado desfile de renomados estilistas. O poderoso grupo Megasoft novamente estava representando pela sua cadeia mundial de roupas femininas, chamadas La Femme, que administrava mais de dez grifes internacionais e tinha duas mil lojas em vinte países.
   Achamos bizarro o convite do mestre. Era um local inapropriado para vender sonhos. Afinal de contas, críamos que pelo menos nesse ambiente e auto-estima encontrara seu melhor meio de cultura. Pensávamos que a auto-imagem, o culto ao corpo e o prazer existencial existiam em outros guetos, mas não no gingado das passarelas.
   "O que o mestre almeja num ambiente desses?", pensávamos. "Que reações teria? Que atitudes tomaria? A quem abordaria?", continuávamos a refletir. Torcíamos para que ele fosse discreto, não caussasse nenhuma turbulência, mas sabíamos que isso era quase impossível.
   Entrar no evento já serua um problema. Afinal de contas, se não tínhamos conseguido entrar no templo da informática, como entraríamos no templo da moda? Nossos trajes eram pitorescos, estávamos fora do rigor da moda. Parecíamos um frupo de pessoas exóticas, antiquadas, notadas não pela graça, mas pela estranheza. Seríamos indubitavelmente rechaçados.
   O mestre trajaca nesse dia um blazer preto desbotado e emanado, que ganhara num trecho e cuja numeração era maior que a sua. Usava calça preta de corte mal definido e bolsos traseiros remendados com pano de cor azul. Vestia camisa verde-musgo amassada e com algumas manchas de caneta esferográfica preta.
   Eu usava camiseta pólo e calça bege que ganhara de um caminhante que reencontrou seus sonhos. Todos estávamos desarrumados, mas as vestes do Bartolomeu eram as mais engraçadas, e, sob alguns ângulos, ridículas. Sua calça amarela estava quatro dedos acima do tornozelo. Uma viúva que morava próximo ao Viaduto Europa a presenteara. Pertencera ao seu marido. Ele estava feliz com ela, pois vivia o ditado "o cavalo dado não se olham os dentes". A meia do lado esquerdo era azul-marinho e a do lado direito, azul-escura. A camisera branca tinha dizeres eloquentes, que retratavam com fidelidade a sua personalidade: "Não me siga! Estou perdido".
   Ao penetrar no imenso hall do salão nobre dos desfiles de modas e observar atentamente as pessoas muito bem-trajadas, o mestre mexeu com nossa estrutura. Não fez discursos nem criticou o mundo fashion. Comentou com segurança:
   - Estou pensando em chamar algumas mulheres para vender sonhos, o que acham?
   O ninho dos homens abalou-se. Éramos um grupi extravagante, excêntrico, reconhecidamente esdrúxulo, mas nos acomodávamos. Havia diferenças, mas estávamos nos ajustando. Nossas discussões fora dos olhares do mestre eram ardentes, mas passíveis de superação. Agora, chamar mulheres para a nossa confraria parecia um exagero. Não daria certo.
   Imediatamente ponderei.
   - Mulheres, mestre? Acho que é uma má escolha.
   - Por quê? - questionou-me
Antes de eu responder, o Boquinha de Mel felizmente saiu em minha defesa:
   - Elas não aguentarão o tranco. Como dormirão debaixo de pontes?
   - Que banheiro usarão? Em que espelho se arrumarão? - ponderou Salomão. Mas o mestre retrucou:
   - Mas quem disse que elas necessitam deixar o próprio lar para nos seguir? Afinal de contas, cada ser humano deveria cender sonhos no ambiente em que se encontra, seja para si mesmo ou para os outros.
   Dessa vez, suas palavras não nos aliviaram. Não admitíamos que uma mulher pudesse participar do grupo, ainda que parcialmente. Por mais que o mestre tivesse nos alertado, depois das batalhas, rejeições e enfrentamentos sociais, estávamos emvenenados com certa dose de heroísmo. Sentíamos-nos revolucionários, protagonistas de uma experiência sociológica fantástica. Não queríamos dividir nossas glórias. Infectados pela discriminação, pensávamos que as mulheres diminuiriam nossa audácia.
   - Segui-lo, mestre, é para... macho, e dos bons. De mais a mais, as mulheres falam demais e agem de menos - disse. Mão de Anjo com convicção, quase sem gaguejar. Em seguida percebeu sua arrogância e tentou se desculpar. Havíamos nos apossado do mestre e de seu projeto. Queríamos dar a ele um colorido masculino.
   Edson também não suportou a proposta do mestre. Usou seus conhecimentos sobre teologia para dissuadir-lhe as intenções.
   - Mestre, Buda chamou aprendizes, Confúcio teve homens como seguidores, Jesus chamou discípulos. Como você quer chamar mulheres para segui-lo? Olhe para a história! Não vai dar certo.
   Pela primeira vez, o grupo foi unânime em se derreter de elogios para o Milagreiro. Começamos a pensar que poderia trazer contribuições interessantes. Todavia, o vendedor de ideias perguntou contundentemente ao nosso teólogo:
   - Quando o Mestre dos Mestres chamou seus discípulos, onde oa colocou, no centro ou na perifieria do seu palno?
   - No centro. É claro - respondeu sem titubear.
   - E as mulheres? - indagou, testando-o.
   Edson pensou, refletiu, pôs a mão na testa, pois sabua que poderia cair em contradição. E, depois de um prolongado momento analítico, respondeu com argúcia:
   - Não posso dizer que na periferia, pois elas lhe davam suporte material, mas não estavam no centro do trabalho, pois não participaram ativamente dl seu projeto.
   Pensei comigo: "Caramba! Achava que Edson tinha uma visão curta, mas mais uma vez mordi a língua".
   O mestre novamente olhou para ele e depois para todos nós.
   - Errado - disse ele, e permaneu em silêncio.
   Por eu ter estudao como sociólogo os textos considerados sagrados, achava que Edson estava certo. Aguardava os argumentos do mestre, desconfiado de que dessa vez não nos convencesse.
   - Elas sempre estiveram no sempre do projeto. Em primeiro lugar, segundo as Escrituras, Deus não escolheu uma casta de faristeus, de sacerdotes ou de filósofos gregos para educar o Menino Jesus, mas uma mulher, uma adolescente não contaminada com o sistema masculino vigente.
   Coçamos a cabeça diante da bomba.
   - Em segundo lugar, a primeira pessoa a anunciá-lo na palestina foi uma mulher, a mulher samarintana. Ela viveu uma vida promíscua, teve muitos homens, mas as palavras dele saciaram sua sede inteiror. Determinada, reuniu seu povo e falou do homem que a comovera. - Após dizer essas palavras, ele parou para respirar e nos tirou o fôlego dizendo: - Uma prostituta foi mais nobre que os líderes religiosos do seu tempo.
   Bartolomeu soltou uma frase que quuebrou o tenso clima que pensava sobre os homens. Não sei onde encontrava tanta imaginação:
   - Chefinho, sempre achei que as mulheres são mais inteligentes que os homens, o problema é que inventaram o cartão de crédito... - E caiu na risada. Dera a entender ironicamente que era ele que sustentava as mulheres que já tivera. Na realidade, elas o tinham sustentado.
   O mestre, não contente com nossa masculinidade preconceituosa, investiu ainda mais. Perguntou novamente para o nosso teólogo de plantão:
   - Diga-me, Edson. No momento mais importante da vida de Jesus, quando seu corpo tremia na cruz e seu coração claudicava, onde estavam os homens, no centro ou na periferia do seu plano?
   Edson, sem cor, demorou a responder. E nós ficamos rubros. Diante do silêncio, o mestre reagiu:
   - Seus discípulos eram heróis quando ele abalava o mundo, mas foram covardes quando o mundo desabava sobre ele: calaram-se, fugiram, negaram, traíram. Mas mesmo assim, ele os amou. Os homens são mais tímidos do que as mulheres.
   Num ímpeto sociológico, retruquei-lhe:
   - Mas eles não fazem guerras? Não empunham armas? Não fazem revoluções?
   Porém, a resposta veio sem titubear.
   - Os fracos usam as armas; os fortes, o diálogo. - Em seguida, fez a pergunta que mais temíamos:
   - Onde estavam as mulheres quando ele morria?
   Sem muito estusiasmo, nós, que conhecíamos o texto, dissemos:
   - Próximas da cruz.
   - Mais que isso, estavam no epicentro do seu projeto. E sabem por quê? Porque as mulheres são mais fortes, inteligentes, sensíveis, humanas, generosas, altruístas, solidárias, tolerantes, companheiras, fiéis, sensatas, do que os homens. Basta dizer que noventa por cento dos crimes violentos são cometidos por homens.
   Ficamos abalados com tantos adjetivos a favor delas. O mestre não parecua feminista, nem parecia estar querendo atirar palavras ao ar tentando compensar milênios de discriminação contra as mulheres. Parecia estar convicto do que pensava.
   Para ele, o sistema que controlava a humanidade foi concebido nas estranhas da mente masculina, embora seus criadores não imaginassem que um dia se tornariam vítimas da sua própria criatura. As mulheres precisavam precisavam entrar em cena e, com sua graça e coragem, vender sonhos, muitos sonhos.

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