Além das Brumas, Viagem à Torreluz

Capítulo Um: O Corvo e a Poção para a Velha Dama

O corvo escutou atento aos cantos das aves quando o arco de tijolos começou a se desfragmentar diante dos seus olhos miúdos, abrindo-se para um lugar escuro. Uma mulher esguia de cabelos castanhos trançados saiu de lá às pressas, carregando um amontoado de livros enquanto as suas vestes arrastavam no piso pedregoso. Havia em seus braços livros de todo tipo, volumosos e finos, compridos e curtos, amarelados e atingidos por traças, outros não possuíam capas, mas a maioria esbanjava capas escuras e rijas. O ar estava carregado pela poeira deles e um odor absurdamente podre, porém familiar, que se manteve pendurado ali quando o arco de tijolos voltou a se fechar. A Feiticeira o atravessou modestamente.

Empoleirado na longa haste da concha de estanho o corvo limpou as suas asas com o seu bico pontiagudo. O vapor ocre cobria o local, emanando do caldeirão a densidade da poção. A mulher de pele jovial esguelhou o líquido borbulhante com interesse, e nele salpicou algo meticulosamente para adquirir a tonalidade e textura adequada. O vapor se intensificou atingindo as paredes pedregosas, fazendo Rasput bater as suas asas num ato de repúdio.

Tudo permanecia do jeito que deveria estar. A cabana de pedras assimétricas, formando um círculo imperfeito, onde quatro arcos marcavam portas sem fechaduras, trincos, saídas ou entradas. Tão pouco havia janelas ou saídas de ar com exceção de uma chaminé que subia sem fim para sabe-se lá onde longo acima do caldeirão. E na verdade a cabana pouco lembrava uma moradia com o seu ar de abandono e desleixo, onde facilmente se via espelhos trincados, amontoados de livretos e papéis soltos, estantes levemente tombadas pelo peso ou com seus pés falsos sustentados por encalces de madeira. Luzes emanavam do teto, flutuavam como pequenas criaturinhas, e algumas até eram, escondidas em frascos de vidro. Uma escada levava ao primeiro andar numa plataforma e no centro de toda esta confusão o fogo crepitava por debaixo do caldeirão, preparando uma poção.

Outros recipientes de vidro vagavam no ar como que se estivessem sendo sustentados por uma estante invisível lá no alto. A ave observou os dizeres no arco de pedra as costas da feiticeira, uma língua Umbriana antiga, algo que não compreendia, apesar de identificar o dialeto. Rasput bem sabia que os portais se abriam para outros planos, assim como também para outros cômodos da sua cabana labiríntica, e suspeitava que pudessem existir até mesmo lugares que nunca visitara.

– Não ouse fazer o que está pensando em fazer seu gato malandro. – Kessyah bateu o pé, e de algum lugar lá do primeiro andar, ouviu-se um miado desgostoso.

Patron ronronou, surgindo com os olhos dourados e a pele sem pelos e enrugada, enroscou-se no corrimão acima, rumando sabe-se lá para onde para tirar um cochilo, sumindo através da parede. A feiticeira voltou a sua atenção para o caldeirão mais uma vez, pousando os livros sobre uma mesa de madeira que flutuava logo ao lado. Rasput voltou a bicar as suas penas azuis.

– O que tanto procura nestas penas, Rasput? – disse a mulher de fala voluptuosa, além de trazer animação no olhar.

– Apenas aproveitando o tempo para me manter limpo. – respondeu. – Além do mais algo me incomoda debaixo da asa esquerda. – suas penas azuis tremularam assim que ele chafurdou o bico nelas.

Kessyah atirou no caldeirão um pó escuro. Rasput que a muito estava ali bateu as suas asas e voou para o corrimão da escadaria em caracol. O odor cobriu ainda mais o recinto, e uma leve neblina, momentaneamente os encobriu. Mesmo assim ainda se via na feiticeira verde um ar de preocupação como se lhe faltasse recursos, como se estivesse com pressa e pensasse avidamente como ganhar mais tempo. Quando a névoa se dissipou, pareceu disfarçar a preocupação.

Patron miou alto em algum lugar, parecia ter voltado.

– Não gosto de contradizê-la. – grasnou, e se pudesse tossir o faria sem sombras de dúvidas. – Mas acho que colocou a dosagem errada de Elwetrish desta vez.