A viagem da fazenda Guaíba até Barra do Piraí foi tão silenciosa quanto se estivessem em oração num monastério. O ranger da roda do coche, as batidas contra as pedras da estradinha de terra, o relincho e o trotar dos cavalos, o som da noite que ia pintando o horizonte, ouvia-se tudo, menos os dois recém-casados, que nem um olhar de esguelha trocavam, encarcerados em si mesmos.
Canto e Melo queria pular pela janela do veículo. Achava que seria melhor do que continuar com aquele suplício em não poder contar para Caetana a verdade sobre quem era e o porquê de ter aparecido por aquelas bandas. Era impedido pelo juramento que havia dado a Montenegro, aos Devassos, ao temido Marquês. E ninguém queria contrariar o Marquês. O próprio Montenegro, que o conhecia a mais tempo, havia preferido se afastar do Clube por "desavenças ideológicas" do que enfrentar o Marquês. Ainda assim, Montenegro ajudava abrigando os escravizados foragidos na Caridade e enviando informações importantes sobre traficantes ilegais, senzalas abarrotadas e "reprodutoras" – que agora eram indiretamente proibidas pela Lei do Ventre Livre. Uma vez Canto e Melo havia encontrado uma "reprodutora" e ficara tão perturbado com aquele "esquema de reprodução humana", que vomitara de nervoso.
Era um quarto pequeno e apertado onde as mulheres estavam deitadas em esteiras e os escravos reprodutores iam inseminando uma por uma. Era bestial. As que ficavam grávidas, eram colocadas à parte, recebiam comida especial e, até terem o bebê, ficavam de resguardo. O bebê nascia e, em poucos dias, a mãe era mandada de volta ao trabalho junto à cria, amarrada nas costas. A criança ficava aos cuidados dela até poder andar e se alimentar sozinha. Então, era vendida para alguma outra fazenda e nunca mais se tinha notícias. O sistema era tão frio e desumano, que nem sempre os reprodutores eram escravos, às vezes eram portugueses contratados, pois um "mestiço" valia mais no mercado de escravizados.
Talvez tivesse sido isso o que obrigara Canto e Melo lutar contra a escravidão. O tratamento animal que ia além dos castigos corporais e da prisão nas senzalas. A escravidão que dilacerava almas, famílias, vidas inteiras em troca do vil metal. E, às vezes, nem isso. Desconfiava que alguns algozes o eram por vocação, pelo prazer de ter poder sobre a sua vítima, era puro sadismo.
Cursara a faculdade de Direito do Largo de São Francisco, junto ao colega Joaquim Nabuco – também filho de político – para tentar entender as Leis e impedir que a escravidão prosseguisse. Porém, não havia uma Lei que a regulamentasse, não havia como lutar diretamente nos tribunais. O jeito seria "indiretamente", pelas "brechas das Leis". Nesta mesma época, conhecera Luis Gama. Filho de escrava, ele havia conseguido permissão para assistir aulas na faculdade. Apesar de não ter sido diplomado – era o que chamavam de "rábula" – trabalhava como escrivão e aproveitava do seu cargo para procurar por qualquer indício de ilegalidade em registros escravos. Canto e Melo tentara se juntar a ele e libertar os escravos juridicamente, porém, era muito penoso ficar horas envergado sobre livros, leis, papéis, registros enquanto a sua cabeça só se recordava dos suplícios que assistia às sombras das fazendas da sua infância.
Pouco depois, fora apresentado a Antônio Bento. Achava se tratar de uma aparição aquele homem de óculos, barbicha negra, capa preta e chapéu de abas largas, que vagava pela cidade paulista feito alguma assombração. Ele havia formado um grupo de rapazes para fomentar fugas escravas – o que viria a ser conhecido como "os caifazes". Foram as "estratégias" de Antônio Bento que melhor combinavam com seu espírito libertador. Canto e Melo participara de algumas escapadas, mas ao levar um tiro no ombro em uma delas, ele foi "aposentado". No ostracismo, reencontrara um antigo colega de faculdade, Luiz Fernando Duarte. Este se relacionava, então, com Eduardo Montenegro, o co-fundador do Clube dos Devassos – que era também amigo de Antônio Bento e Luis Gama.
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As Inconveniências de um Casamento (amostra do e-book)
Historical FictionRio de Janeiro, 1874. Bailes, saraus, passeios pela Ouvidor, visitas à modista ou comer docinhos na Carceller, nada disso parece entreter Caetana Feitosa de Vasconcelos. Tudo perdeu o encanto e o brilho quando ela descobriu, no dia do seu casamento...