Roberto Canto e Melo poderia se considerar um homem paciente. Sempre o fora. Até por demais, alegavam os amigos. Porém, se alguém quisesse fazê-lo perder a paciência, bastava que lhe fosse injusto. Era de tirá-lo das botas. E isso era tudo o que Caetana estava sendo com ele, desde que saíram da estalagem em Barra do Piraí para pegarem o trem para a Corte.
Nem lhe dera um bom dia sequer, ofendida com a sua presença. Passara reto quando ele lhe puxara a cadeira para que tomassem um café-da-manhã reforçado antes da viagem. Tivera ainda que correr atrás dela quando a vira pedindo ao estalajadeiro que lhe arrumasse um coche para a estação, e agüentar calado o fato dela ter ignorado a sua mão estendida para que tivesse apoio ao subir no veículo. Só foi lhe dirigir a palavra quando sentaram-se, frente a frente, no vagão da primeira classe.
-Ao chegarmos no Rio de Janeiro, quero que mantenhamos a discrição da nossa relação.
O tom de exigência fez com que ele franzisse o cenho, desconfortável, mas não tão nublado como no dia anterior, após a conversa deles. Naquela manhã ensolarada, amena pela temperatura que começava a cair com a aproximação do outono, ele tinha o semblante límpido, talvez por causa das roupas em tons azuis que lhe caíam tão bem, talvez pela conversa secreta, talvez porque tivesse achado braços mais confortáveis para passar a noite – se Caetana soubesse que ele havia dormido num agrupado de cadeiras, atrás do bar, possivelmente teria ficado um pouquinho arrependida pela sua rispidez.
Caetana virou o rosto para a janela e se calou, sem maiores explicações.
Canto e Melo teria perdido a paciência com ela se não tivesse reparado na maneira como ela apertava a alça da sua bolsinha, enrolando-a nos dedos enluvados. Estava nervosa. Ele também estava e vê-la assim, com uma longa tristeza no olhar, o machucava. Tentou se acalmar e agüentar que a mágoa dela passasse e pudessem conversar. Queria poder lhe explicar – em parte – a situação –, mas deveria achar o momento propício para tal abertura, pois agora ela só lhe fechava portas na cara. Daria espaço a ela – como na noite passada – e não a pressionaria a perdoá-lo. Tudo a seu tempo!
Soltou um suspiro, cruzou os braços sobre o peito e tentou se acomodar no assento. Tentaria dormir um pouco. Fato era: as cadeiras da estalagem eram duras por demais para quem não havia bebido muito.
O apito da locomotiva avisou que a viagem começaria. Algumas pessoas no entorno correram para encontrarem os seus assentos e outros se aglomeravam nas janelas acenando e atirando beijos.
No tranco do trem, Caetana foi arremessada para frente. Se não fosse por Canto e Melo segurar o seu rosto, teria batido a cabeça.
Suas grandes mãos tomavam todo o rosto pequeno e delicado dela. Ele a tinha, próxima como nunca antes. Podia sentir o perfume doce de lavanda, a respiração exaltada pelo susto. Os dedos quentes dele, sem luvas, desceram, de leve, sobrevoando a pele pulsante. Acariciava o contorno do pescoço dela, por debaixo da renda da gola. Pode sentir a pele arrepiada ao toque e os lábios rosados dela se abriram um pouquinho, tal fossem soltar um gemido. Ele a mirou nos olhos. Caetana o encarava, atenta, esperando que tomasse uma atitude.
Tomou – talvez não exatamente a que ela gostaria. Afastou-se e pediu desculpas numa formalidade que os separava.
Ela voltou-se para a janela, arrumando-se dentro do seu guarda-pó, e permaneceu focada na paisagem pelo resto da viagem. Ele puxou a gola do seu guarda-pó e aproveitou para dormir um pouco no balanço do trem. A noite havia sido intensa – mas não da maneira que ele gostaria.
*
O trem entrou na Estação da Corte ao cair do dia.
Ao saltar do vagão, Caetana sentiu as pernas tremerem e a cabeça virar. Fazia quase 24 horas de jejum. Se Canto e Melo não a tivesse sustentando pelo braço, poderia ter caído num passo em falso e ido para debaixo das rodas do trem. Estava pálida e a boca arroxeada. O marido segurava-a pela cintura, apoiando-a contra o próprio corpo. Preocupado, perguntava o que sentia. Estava ansioso com aquele quase desfalecer. Se Caetana lhe tivesse olhado nos olhos, teria visto que ele estava desesperado.
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As Inconveniências de um Casamento (amostra do e-book)
Historical FictionRio de Janeiro, 1874. Bailes, saraus, passeios pela Ouvidor, visitas à modista ou comer docinhos na Carceller, nada disso parece entreter Caetana Feitosa de Vasconcelos. Tudo perdeu o encanto e o brilho quando ela descobriu, no dia do seu casamento...