Two · The Escape

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- Como foi o interrogatório, minha Rose? - sua voz suave pergunta, sentando-se com auxílio de suas muletas sobre a cadeira, deixando as mesmas apoiadas sobre a mesa.

- Não foi nada demais. Um homem gordinho me perguntou algumas coisas. Acho que era um investigador - Rose responde, pegando uma xícara de café e pondo sobre a mesa. Senta-se logo em seguida, ficando de frente para a idosa.

Margaret. Igual a Rose; tanto na fisionomia quanto na personalidade.

Aos 67 anos, sua pele negra continuava radiante, as rugas quase não podiam ser vistas. Seus cabelos brancos presos em um coque constratavam com seus olhos cor de jabuticaba.

As duas se conheceram na fila de uma padaria. A mais jovem, complicada, tímida, sem saber puxar ou prolongar um assunto. Já a mais velha, sábia, paciente.

Margaret sabia que a garota precisava de alguém. E ela própria precisava também. Após as mortes de seus dois filhos ficara sozinha. Uma ex-depressiva, de fato.

Rose a considerava uma mãe.

Mãe.

- E... Aquela... Garota? - Margaret pergunta, temendo uma reação adversa da parte de Rose.

A jovem negra retira uma mecha de seu cabelo do rosto, pondo-a atrás de sua orelha. Uma clara demonstração de que se sentira desconfortável em relação a pergunta.

- Se você se sente desconfortável...

- Mag, eu preciso tirá-la de lá - Rose a interrompe, bebendo um gole de café da xícara antes posta sobre a mesa.

Margaret pisca algumas vezes.

- Desculpe, Rose, mas...

- Eu preciso tirá-la de lá. Do hospital - a jovem repete mais uma vez, cheia de convicção. - E preciso de ajuda.

- Mas... Por que? - a idosa pergunta, seu olhar confuso.

Rose suspira, fechando os olhos.

A imagem da garota se debatendo, gritando, suplicando por ajuda, inevitavelmente lhe veio a cabeça.

- Por favor, eu só preciso de apoio. Ian... Nunca me ajudaria... - ao citar o nome de Ian, Rose abre os olhos, tentando não parecer afetada. Mas Margaret sabia que ela sempre seria afetada em relação a Ian, quem ela mais queria que lhe demonstrasse amor. Mas não demonstrará. Não mais.

Margaret dá um pequeno sorriso, retirando as mãos de Rose da xícara de café, apertando-as entre as suas em seguida.

- Eu sempre lhe apoiarei, Rose. Sempre.

···

- Eu vim te ajudar - Rose retira o fino cano que perfurara a veia da enferma, responsável por transportar-lhe o soro.

Rose percebera pela primeira vez detalhadamente as feições da garota.

Suas bochechas eram roliças, marcadas por sardas espalhadas por seu rosto pálido. Sua boca entreaberta revelava dentes brancos, dois maiores destacavam-se na frente. Cabelos castanhos avermelhados, com o couro cabeludo coberto por faixas, provavelmente pelos ferimentos ali causados, caiam por seus olhos puxados, fechados. Com certeza era de origem asiática.

Rose sente seu estômago revirar-se, como se borboletas resolvessem hospedar-se ali inesperadamente.

Sem mais hesitar, a garota dos cachos pega a enferma - ainda sob efeitos do sedativo - no colo. Ela era surpreendentemente leve.

Encaminhou-se até a porta, mas parou no meio do caminho, ouvindo gritos do lado de fora.

- Esse hospital é uma porcaria! Eu quero comida! Quero agora! Comida! - Rose reconheceu a voz de Margaret ecoando pelos corredores.

- Pare de espalhar papéis pelos corredores! - uma primeira voz, masculina, soa.

- Ela é uma velha maluca! - uma segunda voz, desta vez feminina. - Seguranças! Chamem os seguranças!

Ótimo! O plano de distrair os funcionários está dando certo!

Assim que a jovem percebe a movimentação em frente ao quarto se distanciar, abre a porta com um dos pés, já que estava somente encostada por esse propósito.

···

A chuva ainda não cessara. E não há previsões de cessar.

Rose ligara para Margaret minutos atrás, mas ela não atendera. Sem notícias. A garota temia que algo pudesse ter acontecido.

Mal podia acreditar que havia retirado ilegalmente uma pessoa de um hospital, sem autorização médica.

Seria sequestro? Seria ela agora uma criminosa?

Olhava pela janela a paisagem, um tanto mórbida. Afinal de contas, seu local de moradia não era um dos melhores.

Rose morava em uma pequena "casa" nos fundos do café em que trabalha. Seu dinheiro não é suficiente para alugar alguma residência, muito menos comprar uma. Sendo assim, para não morar nas ruas, pedira permissão para o dono do estabelecimento para usar essa parte do café não utilizada pelo mesmo como residência.

Antes era o local de moradia de um velho recluso da sociedade, que sem um teto para se abrigar, sensibilizara o antigo dono do ambiente de trabalho de Rose, que lhe fizera tal pequena casa, com dois minúsculos cómodos e um banheiro. Há quem diga que eles tinham mais do que uma relação de piedade e gratidão.

Quando o sem-teto morrera, o dono fizera questão de vender o estabelecimento - morrendo três anos depois, supostamente vítima de suicídio.

Sua única janela tinha como vista um beco escuro, agora com poças de água. De certo que não era das melhores paisagens.

Rose liga novamente para Margaret. Nada.

Uma onda de preocupação lhe domina.

- Por que me ajudou?

Rose sobressaltou, quase caindo de seu compacto sofá - para não dizer minúsculo.

- V-v-você... A-c-cordou?

- Por favor... Peço que me desculpe - a jovem recém acordada avança alguns passos. Muletas lhes serviam como apoio. Um de seus tornozelos estara enfaixado, sem tocar o chão. Rose permanece imóvel, reconhecendo tais muletas como as de Margaret. - Por agir daquele jeito... No hospital.

- T-tudo b-e-em - a garota de pele escura se recompõe.

- Eu sei que não tá tudo bem - a moça sentara-se ao lado de Rose, no sofá. Deita, meio desajeitadamente, as muletas no chão, abaixo de si.

- Não... - por um momento hesita em dizer a verdade, mas cede em seguida. - Não está mesmo...

A jovem assente com a cabeça.

Logo após, um manto de silêncio cai sobre as duas moças.

Ambas as duas sentiam-se desconcertadas, sem saber o que dizer ou fazer.

Até que um soluço perfura os ouvidos de Rose.

- Quem é você? Quem sou eu? Por que eu não tô em casa? Por que eu tô aqui? - A moça dos cabelos castanhos avermelhados desaba em lágrimas e soluços. - Por que eu não me lembro de nada?

Rose sente sua cabeça girar. Até então, ela não sabia de tal detalhe.

"Infelizmente, a única certeza é que sequelas são inevitáveis." - as palavras ditas pelo médico ecoam em sua mente.

Então essa é uma das possíveis sequelas! Perda de memória!

Instantaneamente, Rose se põe no lugar da jovem ao seu lado. Não podia imaginar-se acordar sem lembrar quem foi, quem é, suas origens!

Sentia-se comprometida em ajudá-la a reverter tal quadro.

E iria ajudá-la.

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