O Corvo

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Cap 2

O cheiro de álcool inundava o cômodo fechado, e um gotejar impertinente era o único som audível. Abri os olhos devagar e sentei no sofá, levando alguns segundos para acordar a consciência. Ao redor havia uma garrafa de whisky pela metade sobre uma pequena mesa de vidro, e um copo vazio caído ao chão.

Lembro-me de soltar um longo suspiro cansado e olhar para o relógio digital em cima da TV. Se passava um pouco do horário do almoço, me levantei devagar do sofá com uma das mãos na coluna. Dor. Era o que tomava todo o meu corpo. Fui até a cozinha praguejando e tentando me lembrar do porquê raios meu corpo estava tão dolorido.

Abri um armário pequeno de madeira ao lado da geladeira, peguei um remédio para dor e o engoli a seco tendo ânsias de vômito. Minha cabeça latejava e aquele som irritante continuava, percebi que o gotejar vinha da pia da cozinha, que pingava incessantemente.

Depois de soltar um longo suspiro, fechei a torneira e rumei de volta para a sala ligando a TV no canal de notícias. O meu celular estava caído no sofá, haviam várias chamadas perdidas de Maggie. Foi nesse instante que algo foi se clareando em minha mente. Maggie. Um encontro.

Olhei para os meus pés alarmado. Botas de neve. O ocorrido aos poucos foi ganhando vida, como se eu estivesse tentando me recordar de um sonho ruim. Na TV, se passavam imagens do Parque da cidade com uma repórter apontando para o lago. As letras miúdas diziam: CORPOS ENCONTRADOS NO PARQUE. PROVÁVEL SUSPEITO DESAPARECIDO.

Nesse segundo, todas aquelas imagens se passaram pela minha cabeça como em um filme. O encontro, o Parque, a neve, a mulher desconhecida, o homem manchado de sangue e o lago. Todos foram se misturando e tomando forma em minha mente, até que o vislumbre da sombra negra acertasse minhas memórias como a um tiro.

Meu coração se acelerou subitamente e tudo a minha volta parecia rodar, me joguei no sofá tentando controlar a respiração. Na TV, os dois cadáveres eram cobertos por um plástico negro e levados por um veículo para fora do Parque, enquanto policiais cercavam a cena do crime.

Você pode pensar o que quiser sobre mim, e imaginar consigo mesmo tudo o que poderia fazer se estivesse no meu lugar. Poderia até mesmo me chamar de covarde ou medroso, mas naquela situação em tremendo estado de choque e desespero, o único lugar em que eu queria estar depois do que encontrei no Parque, era a minha casa. Por isso, depois do ocorrido, corri para ela e peguei minha garrafa de whisky para tentar afogar aquela terrível visão na bebida.

E naquele momento, tudo o que eu conseguia pensar era no que eu poderia fazer a seguir. A neve continuava densa lá fora, e o vento forte batia nas janelas como se pedisse para entrar. Com as mãos sobre o rosto tentava organizar os pensamentos, mas algo me incomodava. Um som familiar e irritante. Um maldito gotejar.

Tirei as mãos do rosto devagar e fui andando até a cozinha parando em frente a entrada. Lá estava novamente a pia a gotejar, o incômodo. O mais engraçado era que me lembrava muito bem de ter fechado a torneira com força, até parar de pingar.

Fui em direção a pia e apertei a válvula até as pontas dos meus dedos se esbranquiçarem, dei meia volta e comecei a andar novamente para a sala. Até que, em um estrondo, a torneira começou a pingar de forma que o gotejar, fosse se transformando em jorros longos de água, que espirrava para todos os lados.

Uma mistura de impaciência e alarde foi se formando dentro de mim. Com um punho cerrado, fui até a pia e voltei a fechar o registro com força, amaldiçoando a mim mesmo e àquele dia infernal. Até que avistei um movimento na janela, a minha frente.

Havia um corvo, pousado no batente da janela entreaberta, que me encarava. Tombando a cabeça para o lado, como se estivesse tentando me ver melhor. Não sei a que tipo de sensação a presença do pássaro me tomou, mas meus pelos se arrepiaram quando assemelhei o corvo, a imagem do menino que me encarava no Parque aquela manhã.

Escancarei a janela bruscamente gesticulando para espantar o pássaro, que com o susto saiu voando e pousou em um galho de uma árvore morta pelo inverno no quintal. Na casa ao lado, uma vizinha observava meu pequeno surto com um olhar de desprezo.

Depois disso, fechei a janela dando uma última olhada para o corvo. Logo pude perceber o cheiro fétido que invadia a casa, parecia até que havia estado algum animal morto ali dentro. Rondei pelos cômodos tampando o nariz, tentando encontrar de onde vinha o odor pútrido. Subi as escadas de madeira até o segundo andar que rangiam e estalavam com o meu peso, fazendo com que eu reduzisse minha velocidade a um passo por segundo.

Quando estava no penúltimo degrau, ouvi algo grande e pesado cair no chão. Assustado, dei um salto para trás fincando as unhas no corrimão de pedra fazendo um esforço para não descer escada abaixo. Encarei a minha frente com o coração na boca, o barulho vinha da última porta no final do corredor. Meu quarto.

O cheiro de podridão emanava do cômodo fechado, e um silêncio assustador tomou a residência depois daquele estrondo, como se a própria casa estivesse esperando  pelo próximo som. Que não tardou a chegar. Desta vez, o relógio que estava no quarto começou a tocar sem parar. Com os olhos arregalados pude perceber, que a porta encostada ia se abrindo vagarosamente.

Um medo intenso tomava todo o meu corpo, me impedindo de mexer se quer um músculo diante daquela situação paranormal. A cada centímetro aberto, o relógio soava mais alto. Até que pude ouvir de suas ferrugens um último ressoar fraco, quando sua vibração o fez se espatifar no chão. Nesse segundo, como que em resposta, a porta rangeu parando entreaberta.

Não consigo colocar em palavras o imenso pânico que invadiu meu corpo, quando avistei da porta entreaberta a figura do menino que me encarava. De sua boca escancarada escorria um líquido negro, seus olhos totalmente brancos pareciam querer saltar de suas órbitas e o corpo inteiro exalava aquele odor pútrido de decomposição.

Em um instante minha visão escureceu e meus sentidos me abandonaram, rolei escada abaixo sentindo cada degrau bater violentamente contra o meu corpo. Quando finalmente cheguei no pé da escadaria todos os meus músculos latejavam, e no alto da escada a figura do menino se desfigurava em uma sombra negra.

Com a respiração pesada e a visão oscilante, me levantei com dificuldade indo em direção a porta principal. A abri e dei alguns passos, sentindo meus pés afundarem no gelo. Algo molhado escorreu de minha testa e pingou na neve, era sangue. Segundos antes de perder a consciência e deixar meu corpo cair ao chão, avistei um corvo pousado no galho de uma árvore morta. Ele tombava a cabeça para o lado, como se quisesse me ver melhor.

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