A Prece

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Cap 3

Minha cabeça zunía, e um tic-tac alto assolava meus pensamentos. Uma voz baixa, quase um sussurro me fez abrir os olhos. Estava em uma sala de estar espaçosa com uma decoração meticulosa e antiga. Havia uma idosa segurando um terço, fazendo uma prece em frente a janela de onde se era possível avistar minha casa.

Era minha vizinha.

Toquei minha cabeça sentindo as ataduras, e soltando um gemido de dor.
-Mark! - Disse com uma voz  rouca - Ainda bem que acordou. Vi você desmaiado em frente sua casa, pedi a alguns homens na rua para me ajudar a trazê-lo para cá.

-Senhora Smith, desculpe incomodá-la com sua... - Olhei de suas mãos para o seu rosto - Prece. Eu estava... Eu não sei o que...

Tentava com esforço terminar minha frase, mas não havia palavras que pudessem dar sentido ou credibilidade àquela situação. Encarei a minha residência pela janela desacreditado, relembrando os momentos que os meus próprios sentidos ainda se negam a aceitar.

Maldita sombra.

A mulher olhou de mim, para a casa e sussurrou:
-Pecados se pagam com a escuridão.

Franzi a testa sentindo um nervosismo naquelas palavras estranhas.
-O que disse?

-É melhor você comer alguma coisa, vêm comigo.

A senhora me levou até a cozinha, servindo alguns biscoitos acompanhados de uma bebida quente. A lareira trepidava e o tic-tac continuava na sala, eu comia os biscoitos lentamente observando em silêncio. A idosa se mantinha sentada a minha frente, com os cabelos brancos amarrados em um coque alto. O olhar vacilante, se perdendo em seus próprios pensamentos enquanto sussurrava sua oração agarrada ao terço.

Aquela situação era bem desconfortável, mas depois do que passei preferia mil vezes a companhia daquela vizinha do que aquele assombro, que invadiu a minha casa. Seus olhos eram de um azul fraco, quase cinza, e suas mãos trêmulas faziam a pequena cruz do rosário bater na mesa.
-Obrigado pelo café, os biscoitos e a cabeça, senhora Smith.

-Não precisa agradecer a mim, Mark - Ela disse levantando as mãos em júbilo para os céus - E sim ao nosso poderoso Deus, por ter me permitido ver você caído lá fora com essa neve densa.

-Sim senhora. - Respondi em tom baixo olhando para o copo vazio, desejando que o café tivesse sido uma garrafa de whisky.

-Garoto! Não menospreze a sorte que tem. - A vizinha sussurrou olhando para frente em alerta.

Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, o grande relógio da sala começou a tocar. Era um som alto e tenebroso que ecoava pelas paredes. Enquanto ele soava, indicando três horas, o silêncio era o que assolava a casa.

Senhora Smith olhava assustada para o ponteiro, escutando cada batida com cautela como se esperasse algo. A sensação que o ressoar me passava era estranha, como se o tempo parasse por um segundo, mas até então era algo que eu não sabia explicar o porquê.

Com sua última badalada, a vizinha voltou a orar novamente e o tic-tac habitual tômou seu lugar.
-Mark - Chamou a voz rouca - Você viu os corpos que encontraram no Parque está manhã?

Aquela pergunta fez meu coração acelerar, minhas memórias me remetiam a imagem do homem manchado de sangue e da mulher desconhecida. Não sabia como responder, nem se deveria.
-Ah, sim... Vi pela TV.

A vizinha parou a prece por um segundo e levantou os olhos devagar.
- Apocalipse 21:8.

Com o pensamento perdido havistei a mulher levantar e rumar para a sala. "Apocalipse 21:8", as palavras eram como um eco em minha mente, olhei ao redor e pude ver uma bíblia grande sobre uma estante próxima a mim. Ela estava aberta nos Salmos, folheie até às últimas páginas tendo por direção às palavras da senhora.

Apocalipse 21:8:
"Quanto aos covardes, infiéis, corruptos, assassinos, imorais, feiticeiros, idólatras, e todos os mentirosos, o lugar deles é o lago ardente de fogo e enxofre, que é a segunda morte."

Li cada palavra com um assombro, desejando que a mulher apenas tivesse cometido um engano. O que raios aquela maldita velha queria dizer afinal? Uma mistura de raiva e sonegação enchiam o meu corpo, fechei o livro e rumei para a sala.

A mulher estava sentada em uma cadeira em frente a lareira, com o rosário em mãos e com suas preces.
-Garoto, sente-se um pouco e descanse. O tempo está cada vez pior lá fora, deve esperar antes de voltar pra casa.

Desconfiado, andei lentamente até o sofá e me sentei mantendo os olhos com atenção naquela figura pequena e curvada com o terço, sobre a lareira. Já tinha ouvido muitos boatos sobre aquela vizinha, sobre seu fanatismo com a religião e sobre sua maneira estranha de se relacionar com as pessoas. Mas esses boatos nunca particularmente me afetaram. "Cada louco com sua mania." Eu pensava.

Com o passar do tempo, minha dor de cabeça só piorava, assim como a neve lá fora. Cheguei a tomar um remédio oferecido pela senhora, mas nada adiantou. Tudo o que consegui foi com ele cochilar no sofá, com o tic-tac e o sussurro rouco a minha volta.

Mais tarde, acordei com o som tenebroso do relógio alertando que uma hora já havia se passado. Ouvia uma voz rouca, vindo da cozinha. Do sofá, pude avistar a senhora falando ao telefone. Levei alguns segundos para identificar as palavras.

-Sim Delegado, eu liguei mais cedo mas não consegui falar com o senhor. O homem está aqui na minha casa, eu vi quando ele saiu. Foi ele quem deixou os corpos no Parque.

Aquelas palavras fizeram meu coração disparar. Com um pulo corri até a cozinha, arranquei o telefone das mãos da vizinha e o coloquei no gancho finalizando a ligação. Fuzilei a velha com o olhar enquanto me aproximava, sentindo uma raiva imensa ir invadindo minha alma.

Sua expressão era de medo, apertando o rosário contra o seu corpo ela foi se afastando adentrando a sala.
-Garoto! Reze pela sua alma corrompida.

-O que estava dizendo??! Não foi eu quem matou aquelas pessoas no Parque. Eu simplesmente estava lá, no lugar errado e na hora errada.

A mulher me encarou com fulgor, levantou a mão enrolada ao terço devagar sussurrando.

-O que raios você... - Comecei, mas antes que pudesse terminar a pergunta, a vizinha colou o dedo indicador nos lábios pedindo silêncio.

-A sombra. - Ela sussurrou, fazendo um calafrio passar por todo o meu corpo dolorido.

-O QUE ESTÁ DIZENDO? - Gritei alarmado.

A mulher deu um passo a frente, chegando o mais perto possível do meu ouvido que sua altura consentia e disse:
-Ela estava ao seu lado na neve, esperando você acordar.

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