A casa particular de Manuel Pescada tinha, pelo menos em aparência, recaído no seu primitivo estado de paz e esquecimento. Tanto aí, como pela cidade, já bem pouco se falava de Raimundo.
Ele, ao sair do quarto da amante, havia reformado seu programa de vida. No mesmo dia partiu para Rosário; foi visitar a mãe, na esperança de trazê-la em sua companhia para a capital e viver ao lado dela, mas Domingas não se deixou apanhar e o infeliz teve de voltar só.
Instalou-se no Caminho Grande, numa casinha velha, escondido como um criminoso de morte.
Daí, com muita dificuldade, escreveu uma carta a Ana Rosa, confiando-lhe os seus projetos; a carta terminava assim: "O melhor é deixarmos que tudo serene completamente e que de todo se esqueçam de nós, e então eu te aparecerei na noite que combinarmos e poremos em prática o plano exposto no começo desta. Quanto a teu pai, só me entenderei com ele, no dia em que esse teimoso estiver resolvido a perdoar o genro e a filha. Adeus. Não desanimes e tem plena confiança no teu noivo extremoso. —
Raimundo."
Com essa missiva Ana Rosa tranqüilizou-se tanto, que procurou dissuadir o cônego da idéia da tal confissão. "No fim de contas, se era pecadora, fora-o premeditadamente e não se arrependia. A consciência dizia-lhe que o casamento resgatava a sua falta. Dindinho, por conseguinte, que tivesse paciência, ela não sentia necessidade de perdão!..." Raciocinando deste modo, falou com franqueza ao padre e retirou a promessa que lhe fizera; mas o reverendo repontou, ameaçando-a com uma denúncia a Manuel. A rapariga chegou a suspeitar que o padrinho sabia de tudo, e amedrontou-se.
— Mas, dindinho, vossemecê embirrou com este negócio da confissão!...
O cônego assentou os olhos no teto, à míngua de céu, e, recorrendo aos efeitos artísticos da sua profissão, desenrolou uma prática, que terminava no seguinte:
— Malos tueri haud tutum... Não sabes porventura, pecadora, vítima inocente de tentações diabólicas! que eu devo à minha consciência e a Deus duplas contas do que faço cá na terra?... Não sabes, minha afilhada, que todo sacerdote caminha neste vale de lágrimas entre dois olhos perspicazes e penetrantes, dos juízes austeros e inflexíveis, um chamado — Deus, e outro — Consciência?... Um que olha de fora para dentro, e outro de dentro para fora?... E que o segundo é o reflexo do primeiro, e que, satisfeito o primeiro, o segundo está também satisfeito?... Não sabes que terei um dia de prestar contas dos meus atos mundanos, e que, percebendo agora que uma ovelha se desgarra do rebanho e arrisca perder-se do caminho da luz e da pureza, é de minha obrigação, como pastor, correr em socorro da desgraçada e guiá-la de novo ao aprisco, ainda que se faça preciso a violência?... Por conseguinte, filha de Eva, vem à igreja! vem! confessa-te ao sacerdote de Nosso Senhor Jesus Cristo! abre tua alma de par em par defronte dele, que teu coração se fechará logo aos imundos apetites da carne! Abraça-te, como Madalena, aos pés do representante de Deus, até que este último se compadeça de ti pecadora!
Deum colenti stat sua merces!
E o cônego ficou ainda um instante a olhar para o teto com os braços erguidos e os olhos em branco.
— Pois bem Dindinho, pois bem! disse Ana Rosa, impressionada. E desarmou sem cerimônia a posição extática do padre. — Irei a tal confissão, mas deixe-se dessas coisas e não esteja a falar desse modo, que isso me faz mal aos nervos! Bem sabe que sou nervosa.
Ficou resolvido que a missa encomendada por Maria Bárbara seria no primeiro domingo do seguinte mês, e que Ana Rosa iria à confissão.
Mônica, sempre desvelada e extremosa por sua filha de leite, iniciara-se nos segredos desta e, como era lavadeira, todas as vezes que ia à fonte, dava um pulo à casa de Raimundo para trazer notícias dele a laiá.