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E passaram-se três meses. Ana Rosa, ao contrário do que era de esperar, parecia mais tranqüila; a vigilância contra ela diminuíra consideravelmente: o cônego, fosse por cálculo ou fosse por cumprimento de dever, guardara o segredo da confissão. A casa de Manuel havia, enfim, recaído na sua morna e profunda tranqüilidade burguesa.

De tudo isto Raimundo recebera parte fielmente; e deliberou jogar a última cartada. Escreveu à amante, marcando o dia da fuga. Ana Rosa adoeceu de contente. A coisa seria no próximo domingo; ele faria um carro esperá-la ao canto da rua, e, uma vez que estivessem juntos, fugiriam para lugar seguro.

O raptor não seria facilmente reconhecido, porque as barbas lhe transformavam de todo a fisionomia.

"No entanto, dizia ele na carta, domingo, às oito da noite, hora em que teu pai costuma conversar na botica do Vidal; quando os vizinhos e caixeiros ainda estão no passeio, e tua avó aos cuidados da Mônica, que é nossa, nessa ocasião, um sujeito barbado, vestido de preto, assoviará junto à tua porta uma música tua conhecida. Esse sujeito sou eu. Ao meu sinal descerás cautelosamente e sem risco algum. O resto fica por minha conta, a casa que nos há de receber e o padre que nos casará, estarão nesse momento à nossa disposição. Ânimo! e até domingo às oito horas da noite."

"P.S. — Toda a cautela é pouca!..."

Ana Rosa durante os poucos dias que faltavam para a fuga, não fazia mais do que sonhar-se na futura felicidade; estava sobressaltada e ao mesmo tempo radiante de satisfação; mal se alimentava, mal dormia, cheia de uma impaciência frenética, que lhe dava vertigens de febre. No egoísmo da sua alegria materna suportava de mau humor as poucas amigas que a procuravam ou os velhos companheiros de Manuel, que às vezes apareciam para jantar. Mas ninguém parecia, nem por sombras, desconfiar dos seus planos; ao contrário, em casa falava-se, à boca cheia, na obediência daquela boa filha tão resignada à vontade do pai, e cochichava-se devotamente sobre o salutar efeito da confissão. Maria Bárbara resplandecia de triunfo e, como os outros da família, redobrava de solicitudes para com a neta; Ana Rosa era tratada como uma criança convalescente de moléstia mortal, cercavam-na de pequenas delicadezas e mimos amorosos, evitavam-lhe contrariedades, perdoavam-lhe os caprichos e as rabugices.

O cônego, malgrado o que sabia, nunca se lhe mostrara tão paternal e tão meigo. E o Dias, o inalterável Dias, ia surdamente ganhando certo predomínio sobre os seus colegas, que principiavam já a respeitá-

lo como patrão, porque viam iminente o seu casamento com Ana Rosa.

— Está de dentro! Está ali, está entrando pra sociedade!... rosnavam os caixeiros do Pescada, depois de comentar os novos ares com que a menina tratava Luís.

Ela com efeito, agora o acolhia com menos repugnância; uma vez chegou mesmo a sorrir para ele. Este sorriso, porém, tão mal-entendido por todos, nada mais era do que o contentamento de quem observa o precipício por onde passou e do qual se considera livre.

O fato, porém, é que Manuel andava satisfeito de sua vida. Ouviam-no cantarolar ao serviço; viam-no à porta dos vizinhos, sem chapéu, às vezes em mangas de camisa, a chacotear ruidosamente, afogado em riso; e à noite, em casa, quando chegava o cônego, agora ferrava-lhe sempre um abraço.

— Você é um homem dos diabos, seu compadre! Você é quem as sabe todas!...

— Davus sum non Aedipus!...

A panelinha discutia em particular o grande acontecimento. "Quem seriam os padrinhos?...

Quais seriam os convidados?... Como seria o enxoval?... Como seria o banquete?..." E, em breve, por toda província falou-se no próximo casamento da filha do Pescada. Comentaram-no, profetizando boas e más conseqüências; riram-se muito de Raimundo; elogiaram, em geral, o procedimento de Ana Rosa: "Sim senhor! pensou como moça de juízo!..." Todos os amigos da casa começaram a preparar-se para a festa, antes mesmo do convite. O Rosinha Santos andava pouco depois preocupado com o improviso de uma poesia, com que contava reabilitar-se do seu fiasco no dia de São João; o Freitas desfazia-se em discursos, aprovando o fato, mas lastimando Raimundo, cujos artigos e cujos versos ele apreciava convictamente; o Casusa verberava contra os portugueses, furioso porque uma brasileira tão bonita e tão mimosa fosse cair nas mãos de um puça fedorento; Amância e Etelvina perdiam horas a boquejar sobre o caso, insistindo a viúva em que, só vendo, acreditaria em semelhante casamento.

O Mulato (1881)Onde histórias criam vida. Descubra agora