Abri meus olhos com uma tremenda dificuldade e fitei o teto mofado por alguns minutos. Me perguntei que horas eram e levando em consideração minha forte dor de cabeça, devo ter dormido mais que o normal. Levantei do colchão velho no chão que estava naquele cubículo que eu chamava de quarto, aquele 'apartamento' todo na verdade era uma caixa de fósforo. E daqui a algumas semanas nem ele eu terei mais, já que recebi minha carta de despejo na semana passada.Andei pela casa e encontrei algumas roupas sujas que estavam jogadas no chão da sala e logo as vesti. Olhei para o relógio que ficava grudado na parede e levantei as sobrancelhas quando vi o horário. Não creio que dormi até seis e meia da tarde.
Lavei meu rosto no minúsculo banheiro e troquei o curativo ensanguentado do meu pulso, percebendo que a ferida ainda se encontrava aberta. Toquei na fenda que estava cortada e uma forte pontada de dor me atingiu em cheio. "Merde!"** grunhi por entre os dentes.
"Porcaria!"**
Ajeitei as coisas no banheiro e revirei os olhos para o barulho insuportável que as crianças faziam na calçada em frente à minha casa. Andei rastejando em direção à cozinha e olhei para o interior da geladeira vazia. Peguei uma garrafa de cerveja Leffe Blonde e abri sua tampa com minha outra mão, logo tomando um gole farto da bebida. Provavelmente minha dor de cabeça dobraria de intensidade, mas isso não importa agora.
Andei até a porta do apartamento com a garrafa na mão e com insultos na ponta da língua contra aqueles moleques, mas abri a porta e fiquei parada na frente dela. A asiática da noite anterior, seu nome não me vinha a mente agora, estava sentada na calçada e as crianças brincavam com ela, pareciam adorá-la. A moça estava com um vestido não tão longo, um cardigã fino e branco sobre seus ombros magros, uma sapatilha vermelha e seus cabelos estavam arrumados em uma trança delicada e bonita, dando-lhe um ar mais jovial ainda. Seu sorriso sincero preenchia a atmosfera, contagiando a todos que passavam. Percebi uma mecha castanha que se soltou da trança, insistir em cair e cobrir aquele castanho dos seus olhos. Tomei um gole da bebida e senti aquilo descer rasgando por minha garganta, mas não me permitir fazer barulho, apenas me limitei a observar a cena.
"Vous ne pouvez pas tromper la blague!"** ela disse entre suas risadas, agarrando uma das crianças no seu colo. Seu sotaque francês mal treinado se notava de longe.
"Vocês não podem trapacear na brincadeira!"**
"On ne triche pas!"** as crianças gritaram enquanto riam, recebendo cosquinhas da moça. Devo admitir que lá no fundo, considerei aquela cena beirar o adorável.
"Nós não estamos trapaceando!"**
Virei a garrafa em minha boca novamente e um gole volumoso da bebida desceu por minha garganta, e pigarreei alto o suficiente para ser ouvida. Uma das crianças se assustou ao olhar para mim e chamou as outras para saírem correndo, deixando a garota um tanto confusa, mas a vi arregalar de leve os olhos assim que virou para trás e me viu.
Meus olhos estavam colados em cada movimento seu. A asiática se levantou e bateu de leve em seu vestido para desamassá-lo, logo levantando um olhar tímido para mim. "Bonjour."** sua voz era tão suave que me deixei compará-la com uma melodia agradável para os ouvidos.
"Olá."**
Sem respondê-la, tirei um cigarro de dentro do bolso da mesma calça que eu vestia ontem e coloquei entre os dentes, logo o acendendo. A garota desviou o olhar e colocou a mecha inconveniente para trás de sua pequena orelha. "Desculpe, fizemos muito barulho?"
"Sempre fazem." eu disse tirando o cigarro da boca e soprando a fumaça para o lado contrário da moça, mas logo voltei a olhá-la.
Ela acariciou a pele do seu braço, como se pensasse no que iria falar. Considero a hipótese de que meu olhar não a ajuda a se sentir confortável, mas não ligo. É uma bela garota, é justo me deixar observá-la um pouco.
"Quer andar um pouco?" sua voz quase nula vacilou em alguns pontos, e posso jurar que suas bochechas se ruborizaram em um tom fraco de vermelho.
Não respondi novamente e virei a garrafa em minha boca outra vez, notando quando seus olhos curiosos observaram tudo. Abaixei a garrafa e estendi para ela que logo me negou. "Não bebo... e nem fumo."
"É uma pena." eu disse e bebi outro gole da garrafa. "Você está aqui novamente. Mora aqui por perto?"
Ela me olhou para em seguida negar com a cabeça. "Estou ficando em 105 Boulevard du Montparnasse."
"C'est loin d'ici."** respondi em francês para a garota e a vi arquear as sobrancelhas em confusão. Seus limites no francês eram curtos.
"Isso fica distante daqui."**
"Me desculpe, eu não compreendo." ela explicou. "Estou aqui a passeio e falo apenas o básico da língua."
Concordei com a cabeça e comecei a andar pela calçada, mas parei depois de alguns segundos quando notei que a jovem moça não me acompanhava. "Não queria andar?"
Ela assentiu e a esperei chegar do meu lado para continuar a andar em passos lentos. Ficamos em silêncio até chegarmos na mesma praça do dia anterior, e me sentei em um dos bancos, logo vendo a garota se sentar do meu lado, mas afastada.
"Me lembre o seu nome, por favor." pedi encarando-a.
"Jennie." ela repetiu e eu assenti. "Não é justo que saiba o meu, quando não sei nada sobre você."
Semicerrei meus olhos para ela e a fitei de canto. "Sabe onde moro."
"Você sabe meu nome e onde estou hospedada." ela respondeu rapidamente, reparei que no fundo ela gostava de falar, apenas possuía receio comigo. "Então me deve algo sobre você."
"Não te devo nada." respondi e vi seu olhar se abaixar, e ela assentiu com a cabeça, como se estivesse magoada de alguma forma. "Tudo bem, é justo que saiba algo sobre mim."
Ela levantou seu olhar para mim novamente e sorriu pequeno, olhar em seus olhos era agradável. Não sabia identificar ao certo quais os pensamentos que passavam por sua mente naquele momento, a moça era como uma pequena surpresa.
"Me chamo Lisa." revelei e a garota sorriu para mim. Meus olhos observaram seus dentes em um branco perfeito e seus formatos pequenos eram lindos.
"Plaisir, Lisa."**ela disse baixinho e eu concordei com a cabeça para ela.
"Prazer, Lisa."**
"O que faz na França?" perguntei e a garota juntou suas mãos em seu colo.
"Meu pai veio à trabalho e eu o acompanhei, mas estou de férias apenas." ela explicou gesticulando.
"Gostou daqui?" questionei e coloquei a garrafa e o cigarro no chão ao lado do banco.
"É uma cidade incrível." ela sorri e olha em volta. "Mas as pessoas... são um tanto frias."
Sorri com sua fala e concordei. "Foi uma indireta?"
Ela negou. "Não foi, eu juro."
"Está tudo bem. O que disse é verdade." respondi e me levantei do banco. Jennie se levantou e começamos a andar lado a lado de volta para a rua de pedras da minha casa. "Europa é fria. Não só no clima, mas nas pessoas. Muito individualistas."
"Você é daqui?" ela perguntou e seus olhos curiosos esperavam uma resposta de mim. A olhei por alguns segundos e neguei com a cabeça.
"Cheguei aqui com treze anos, completamente sozinha. Mas vivo aqui há dez anos, aprendi a ser um deles." ela escutava com atenção, mas apenas acenou com a cabeça. Me virei para a garota assim que chegamos na porta do meu apartamento. "Como vai voltar para onde está hospedada?"
"Ah, pegarei um táxi." ela respondeu e sorriu sem mostrar os dentes.
"Acha seguro?" perguntei para ela que logo assentiu com convicção.
"Meu pai tem um de confiança, não é a primeira vez que ele vem a Paris."
Ficamos em silêncio por alguns instantes e coloquei minhas mãos nos bolsos da calça. "Boa noite, Jennie. Espero vê-la amanhã outra vez."
Ela sorriu com minha fala e concordou para mim, se afastando assim como eu. "Eu virei. Boa noite, Lisa."