Capítulo 2: O homem que já amou

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     Perdoe-me por me perder em meus próprios pensamentos, voltemos ao começo, antes da minha volta a cidade, antes mesmo da ida, voltemos a minha juventude, época em que eu acreditava nas pessoas. Acreditava que todas queriam sorrir, mas não tinham coragem, época que acreditei na humanidade, época que eu tinha esperança.

     Época que eu era um tolo...

     Mas veio a calhar essa minha boa fé, tornei-me um vendedor de sapatos, visto que meus pais nunca puderam pagar minha faculdade, e lá estava eu, em 1949 com meus 19 anos batendo de porta em porta vendendo a mercadoria. -Vendendo uns bocados, ganhando uns trocados- dizia eu. Sempre com um sorriso no rosto, os clientes adoravam me receber, pois além de vender, eu também conversava com eles, sempre prestando atenção em suas histórias. Também tínhamos uma loja física, eu e o Sr.Wagner, este como peça antiga, já alcançava seus 51 anos, me considerava como um neto ou sobrinho, ele que me apresentou o ramo de calçados. A loja que eu trabalhava era simples, vendia de tudo para sapatos, cola para consertos, cera para engraxar, cadarços, fivelas, e várias outras coisas. Lembro-me que quem mais comprava nossa cera era o Miguel, um rapaz de 15 anos, ele engraxava sapatos na frente da nossa loja, a família dele não ganhava muito, então todos trabalhavam. Seu pai trabalhava numa fábrica de embalagens, antes era embalador, mas a modernidade trouxe as máquinas, estas que valiam por vinte funcionários, e empacotavam vinte vezes mais, coube ao seu Antenor, pai de Miguel trabalhar para as máquinas, a manutenção era simples, mas seu Antenor era ardiloso, fazia parecer extremamente difícil, e o dono da fábrica se via obrigado a mantê-lo no emprego, na preocupação de não encontrar outro capaz de realizar o ofício, que para ele, deveria ser para alguém muito bem qualificado.

     Sua mãe era doméstica, ajudava as vizinhas a lavar as roupas, cuidar das crianças, fazer comida, mas era mulher de boa vontade, quando as vizinhas não tinham dinheiro para pagar a ajuda, ela dizia: "Eu pego mais tarde", e perdoava a dívida sem dizer nada. Era minha inspiração naquela época, desejava ter essa bondade, mas quando as contas me sufocavam minha mão fechava, e a boca abria reclamando das dívidas que me eram devidas. Como eu já disse, era um tolo, isso podia atrair o dinheiro por um tempo, mas afastava as pessoas. Lembre-se do que eu te disse leitor, patrimônio vem por último. Mais valeria eu estar velho e pobre, mas bem visto por todos ao meu redor como Lourdes, mãe do Miguel, do que um velho rico, e sem ninguém para entregar um sorriso.

     Aprendi isso logo e comecei a perdoar, ou dar mais tempo as dívidas, pensei que ficaria com um prejuízo maior do que a minha culpa, nunca me enganei tanto, por perdoar algumas dívidas, e demorar mais para cobrar do que os outros sapateiros e lojistas, as vendas triplicaram, nunca vi tantos sapatos serem vendidos, e tantas pessoas alegres, vendia sociais de bico quadrado, vendia tamancos, saltos, sapatilhas... Queria que Wagner tivesse visto isso, afinal, ele que me convenceu a ter tal maturidade, certo dia ele veio em casa para conversarmos sobre os negócios: 

      -Você sabe da situação da cidade, não tenha pressa em receber o que lhe devem, a cidade é pequena, as pessoas não gostam de cobradores, as pessoas gostam de sapatos, Antônio. -Sim, este é meu nome, não achei importante dizer isto logo no começo, preferi por perder-me dentre as palavras e minhas filosofias. 

      -Perdoe-me, mas em tempos difíceis, as contas não fecham, o desespero é maior do que a razão... 

      -Esqueça a razão, dê uma chance à boa vontade das pessoas, elas sempre vão pagar, mas seu desespero em fechar as suas contas vai amedrontar essa gente, o receio de não conseguir pagar se torna maior quando você não para de cobrar. Lembra-te, não seja um cobrador, seja um vendedor. - Essa conversa que levou o sucesso à loja, aconteceu três meses antes da explosão das vendas, Wagner morreu duas semanas depois, teve um ataque cardíaco fulminante, o hospital mais próximo ficava a horas de viagem, mesmo à cavalo, ele não teve chance. 

     Gosto de pensar que ele foi para um lugar melhor, onde o homem não mata para comer, não destrói para morar, nem se cansa no fim do dia. Quem sabe não regozijarei ao seu lado? Conversaríamos sobre a velha cidadezinha, e da nossa lojinha, onde ele sempre trabalhou. Pergunto-me se as pessoas usam sapatos no paraíso, e se ele ainda não fabrica alguns por lá... 

      Recordo também dos meus pais, Roberto Santiago, meu pai, era um homem robusto, rara era a ocasião em que sorria, sempre me dizia que a liberdade era a única coisa que eu não poderia perder, se alguém se atreve a tirar sua liberdade, lute por ela com facas e balas, olho por olho, dente por dente. Já minha mãe, Helena, era mais amorosa, cobria-me de beijos durante a infância, sempre me ensinou que há bondade nas pessoas, mas elas têm medo de demonstrar. Eles compraram um sítio onde se aquietaram, me recordo também dos meus irmãos, Heráclito, José, Thiago, nunca tivemos uma relação muito boa, até por que meus interesses eram bem além do que eles sonhavam, eles queriam ficar no sítio, não achavam que teriam sorte no mundo, e ficaram por lá mesmo cultivando trigo e tocando gado. Dedicarei depois um capítulo sobre minha infância quando minha mente estiver mais limpa e nostálgica. 

      É engraçado como antigamente eu gostava da filosofia da minha mãe, mas hoje vejo que é bem mais sensata a de meu pai, afinal, não há justiça se só uma parte é prejudicada.                                                                                                                                    


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