Capítulo 3

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A chuva caía lá fora e com ela vinha o cheiro de asfalto molhado pela madrugada. Não estava calor, tampouco frio – o clima era agradável. Porém, por mais que o descanso fosse necessário, após algumas horas de sono, Ian acordou com o barulho da chuva. Dali em diante não conseguiu voltar a dormir. Lembranças, ansiedade, saudades, nostalgia, todas elas juntas voltaram avassaladoras naquela noite. Era raro ele perder o sono, contudo, nas últimas semanas acontecia com frequência. Nas primeiras vezes que acontecera, ele deixou passar despercebido, acreditando ser o cansaço, e até mesmo o estresse do trabalho. Poderia ser comum a profissão que escolhera, mas percebeu que era algo fora do normal. Foi então que ele percebeu que em todas as noites que perdera o sono, a lembrança de sua mãe se fazia presente – não que ela tirasse o seu sono por trazer problemas extracurriculares e familiares, mas sim a falta que ela lhe fazia.

Ian foi criado por sua mãe sem conhecer seu verdadeiro pai. Sua mãe lhe dizia que o homem pelo qual ela se apaixonou e viveu um romance, sumiu pelo mundo após descobrir que ela estava grávida. Viveu com Dona Íris até a adolescência em uma casa razoavelmente boa comprada pelo avô materno. Teve uma infância que toda criança merecia ter e nunca lhe faltou nada. Até que lhe tiraram o chão. As plantas doas seus pés não tocaram mais a terra e caía em um abismo sem fim. O seu mundo inteiro desapareceu como em um piscar de olhos.

Era o dia de formatura do colegial, e naquele dia, pela manhã, Ian estava provando e ajustando os últimos detalhes de sua beca em uma alfaiataria próxima de sua casa. O alfaiate ajustava um botão aqui, um aperto ali, e o garota permanecia imóvel, esperando que tudo acabasse logo de uma vez.

Dona Íris estava em casa escolhendo e provando a sua melhor roupa para a ocasião. Sentia-se orgulhosa do filho que logo estaria na faculdade. Sentia também um orgulho pela educação e personalidade que Ian desenvolvera. Ela via nele um futuro brilhante pela frente. Enquanto se via pelo espelho, provando todos os vestidos que ela tinha, ela sorria. Simplesmente sorria como sempre fora. Mas, como ela sempre dizia ao filho, o sempre nem sempre fora assim. E tudo havia um fim. Naquele dia o mundo lhe tiraria de cena antes mesmo de cada adolescente do colegial ocupar o seu lugar.

Não houve ninguém que trouxesse a notícia, tampouco alguém que soubesse da fatalidade. Ian voltava a pé para casa. Era mais um dia comum no bairro. O trânsito corria pelas ruas conforme o fluxo permitia. As pessoas andavam para lá e para cá com suas pressas particulares. O comercia sorria para as vendas e o céu prometia um dia sem chuva. As casas do bairro eram delimitadas por uma cerca baixa de madeira pintada de branco, outras apenas com verniz. Um espaçoso gramado cobria a frente do terreno com alguns arbustos salpicados pelo quintal. Tudo isso trazia um ar de segurança para a vizinhança, mesmo próxima do centro da cidade. O índice de roubos e furtos era baixíssimo se comparados aos outros bairros circunvizinhos. Na verdade, a cidade inteira provinha de uma segurança exemplar. Contudo, naquele dia de colação, como se fosse culpa dos próprios moradores serem tão confiantes, o mal caiu sobre a casa de Ian.

Quando chegou em casa, entrou pela porta da frente que dava acesso a sala de TV. Deixou no sofá mais próximo todo o aparato que vestiria na formatura e seguiu até a cozinha. Pegou um copo com água e a bebeu como se estivesse há muito tempo sem toma-la. A água descendo pela garganta lhe provocou uma sensação de satisfação. Ainda na cozinha, notou um silêncio um pouco fora do normal. Nos últimos dias sua mãe andava ansiosa e animada pela colação do filho. A casa era preenchida por músicas animadas e uma dança aqui e acolá entre mãe e filho. Dona Íris demonstrava seus sentimentos de acordo com os ritmos e velocidades das músicas que ouvia. Naquele dia não havia música.

Ian pensou que sua mãe estivesse dormindo ou apenas descansando em alguma poltrona no quarto. Colocou o copo em cima da pia e foi para o quarto da mãe. Quando entrou no corredor que dava acesso aos quartos, sentiu um peso desolador sobre as costas. Era como um mau presságio. Algo que ele não queria continuar para ver. Seu peito ficou apertado e o coração começou a bater mais rápido. O silêncio fazia com que cada batida do seu coração pudesse ser ouvida a distância.

Chegou à porta do quarto de sua mãe e encontrou uma poça de sangue já ultrapassando o batente. A porta estava entreaberta e ele não podia ver muita coisa lá dentro. Hesitou em abri-la e pediu com fé para que nada de ruim tivesse acontecido. Em contrapartida, pensou que sua mãe podia estar precisando de socorro e que ele deveria entrar logo no quarto para socorrê-la. A porta foi aberta e Ian encontrou um corpo estendido em cima da cama com a cabeça pendurada para fora. A primeira reação foi de procurar sinais vitais. Porém, não havia nada a ser feito. Sua mãe estava morta, várias perfurações causadas por facas no tórax.

Naquele dia não houve músicas alegres, tampouco a dança de formatura.

A chuva continuava a cair e o sono sequer dava as caras. Eram quatro horas da manhã e Ian assistia a um programa qualquer que passava na TV. Aquela noite definitivamente fora difícil de encará-la.

O Agulha Negra - O Sempre Nem Sempre Foi AssimWhere stories live. Discover now