Quinimmo beati, qui audiunt verbum Dei et custodiunt illud." (Bem-aventurados aqueles que ouvem a palavra de Deus e a guardam.)
O pecado mais uma vez teimava em querer fazer residência em seu coração, assolando-o. Dançando ao seu redor a espera de uma brecha, algum sinal de fraqueza e dúvida para então se assentar permanentemente. Era o mal, o puro demônio, àquele que conspurca e carrega os fiéis, arrastando-os pelo caminho da perversidade. Arrebatando-os, condenando a toda e qualquer criatura, sem jamais esmorecer.
Os lábios do clérigo se uniram por um segundo, tementes, antes de se abrirem para mais uma vez proferir as santas palavras. A reza que o livraria dos pensamentos mundanos e o manteria puro para assim poder cumprir com a sua sina. Não seria ludibriado pelas falácias do demônio. Não mais.
Seus passos cessaram ao final da pequena escada, os olhos carregados de sabedoria e dever. Os dedos buscaram o pequeno pingente em forma de cruz que trazia junto ao peito, fechando-se ao seu redor, e levando-os aos lábios, beijou a madeira de olhos fechados em adoração. Recitou com fé as sagradas escrituras, apertando o objeto com afinco.
"Non timebo mala quoniam tu mecum es"( Não temerei mal algum, porque Tu estás comigo.)
Sua mãe lhe ensinara aquelas palavras, assim como todas as demais, gentilmente sentada ao seu lado, com uma paciência digna de uma verdadeira devota adepta. Naruto recordava dos olhos gentis e movimentos suaves, os dedos que traçavam linhas invisíveis sob a extensão de cada palavra lida. Kushina sempre fora uma mulher de fibra, do tipo que não aceita desaforo e mantêm-se firme independentemente da situação ou adversidade. Jamais esmoreceu frente as dificuldades, imperturbável em sua fé, da qual tirava forças para seguir em frente.
— Nosso Senhor se agrada de nossos pensamentos puros, Naruto. Tenha isso sempre em mente.
Naquela época ele não se importava muito com a religião, a igreja e o que representava para sua família. Vivia feliz alheio aos temores do fogo infernal, tendo ciência de seus supostos pecados, sem recear o amanhã e as surpresas que ele traria. Aproveitava os ensinamentos da mãe por amor a ela, tendo o momento de proximidade de maior valia que as lições. Tê-la ali, ao seu lado, afagando seu cabelo com aqueles dedos suaves, a voz doce que entoava cânticos e lia trechos em latim e português era o que lhe trazia maior felicidade. No auge de sua meninice não se apegava a detalhes, tampouco se importava com demônios, pois não compreendia totalmente a ideia de céu e inferno. A mãe ralhava com carinho, sempre cercando-o de cuidados.
Uma devota fiel, sempre solícita e entregue as vontades do senhor. Até o mal fazer ninho em seu lar.
Então tudo mudou.
Foi apavorante perceber a conduta do irmão mais velho mudar com o tempo, um declínio gradual e assustador. De um garoto tranquilo e amoroso, que sempre punha as necessidades do irmão mais novo a frente das próprias, Menma se transformou em um garoto arisco. Outrora amante das lições litúrgicas, ele se tornou averso as escrituras e tudo o que significavam. Recusava-se a ir as missas, profanava itens e ensinamentos sem o menor pudor, xingava, blasfemava e tripudiava sem temer as consequências de seus atos. Se posto de castigo ele tratava de fugir ou se revoltar fazendo em pedaços o que via pela frente, arremessando ao chão, com furor, todo objeto sagrado em que punha os olhos.
No início, Naruto gostou daquela mudança radical. Sua mente inocente e pueril interpretou graça nos atos vândalos e agressões verbais gratuitas do irmão mais velho. Até mesmo chegou a se unir a ele em suas estripulias, embora ainda temesse as consequências. O sorriso perverso que ele usualmente ostentava e o olhar debochado lhe atraíam e o convidavam a cometer escondido pequenos atos, em uma tentativa de assemelhar-se ao primogênito.
Como arrependia-se daquele comportamento que ajudou a atrair a desunião e infortúnios para a própria família que se desestruturou, fragmentando-se enquanto o jovem Menma debandava para o lado sombrio. Conquanto deixou de achar graça ao perceber que os atos do irmão estavam ficando cada vez mais sombrios. Principalmente quando o viu se reunir a outros garotos, orquestrando assembleias secretas que ocorriam em sítios abandonados.
Ao segui-los escondido, topou com cenas que ficariam gravadas em sua mente para sempre, acompanhando-o até a fase adulta, como uma maldita marca impossível de ser removida.
No pequeno armazém abandonado eles maltrataram um gato, degolando-o e usando seu sangue para desenhar no chão imundo um estranho sinal -que mais tarde Naruto descobriria se tratar de um símbolo satânico-, dispondo-se ao seu redor e invocando um nome estranho que hoje lhe causa arrepios. Era como se pudesse ouvir a voz sussurrada do irmão repetindo-lhe ao pé do ouvido, com a voz afetada pelo humor negro e estranha satisfação: Samael.
As velas negras ao redor do lugar tremeluziram, suas chamas vibrando e espalhando pelo espaço uma coloração sinistra, em estranhas matizes vermelho-douradas. No instante seguinte, olhos negros piscaram a sua frente e, apavorado, ele correu como se o próprio cão estivesse em seu encalço. Os gritos alarmados dos jovens o perseguiram, clamando alarmados por seu retorno, mas ele não lhes deu qualquer atenção e permaneceu em sua corrida desenfreada, até que se sentisse seguro.
Depois daquele momento sua vida degringolou. Menma tornou-se cada vez mais violento, ameaçava-o constantemente, e trazia desunião ao lar. O pai cria ser apenas uma fase, apenas rebeldia adolescente, certamente ocasionada pela pressão posta sobre o primogênito para se tornar um cristão devoto, muito embora não culpasse a esposa, e sim a própria família que, desenganada de si o coagia a ser virtuoso e esmerado. Minato era ateu, e ao seu ver aqueles supostos indícios de possessão não passavam de criação da mente de sua esposa e amigos. Pura balela, apesar de nunca os ofender com palavras amargas, buscando sempre racionalizar sem lhes colocar em vergonha, ofendendo-os por sua crença. Era um homem bom e amoroso.
Seu ceticismo seria posto à prova na noite de nove de junho, quando horrorizado, presenciou uma cena que o levou a insanidade.
Em mais um de seus ataques histéricos e zombeteiros, Menma atravessou a barreira entre o aceitável e o imperdoável quando chegou em casa com um grimório, abrindo-o a frente dos pais e recitando palavras em latim com o olhar semicerrado e desafiador. Kushina assombrada, não teve outra reação que não a de chorar, incapaz de lidar com o fato de ter um filho satanista. O pai levantou-se de maneira urgente para repreender o jovem que, com escárnio, invocava satã encarando a mãe com alegria perversa. A comoção levou a mãe de ambos a um colapso nervoso que resultou no aborto de seu filho caçula. Depois daquele dia o clima ficou tenso dentro da casa, e ao final de três meses tornou-se insuportável.
Foi a primeira vez que Naruto presenciou um exorcismo. O resultado foi um pai louco, uma mãe depressiva e um irmão atordoado que jurava não se lembrar de nada, como se houvesse entrado em um estado de hibernação que durou cerca de dois anos. Sua família nunca mais foi a mesma, e ele abraçou de maneira incondicional a religião, desejando pagar seus pecados e assim se redimir por ter cedido a influência do irmão mais velho, incentivando-o ao se divertir com aquele cenário tão díspar da educação exclusivamente cristã a qual vinda sendo cunhado desde o berço.
Por isso havia se entregado ao celibato e seguia como um mensageiro de Deus, estudando latim com afinco, tornando-se um padre e, consequentemente, um exorcista. Por isso estava ali naquela noite para livrar mais uma família do mal que o demônio trazia ao seu lar.
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Sinner
FanfictionDesde que o novo padre chegou para assumir a paróquia de Konoha, Sasuke, herdeiro mais novo de uma das famílias mais influentes cidade, tem se sentido estranhamente atraído pelo sacerdote. Inconscientemente começa a suprir um desejo intenso pelo loi...