E quem veio e viu, soube que não havia segredo que os portões de ferro mantivessem oculto da luz do sol.
A estrada de pedra se perde em curvas geométricas, levando a memórias, e vi ali as minhas, entre as flores que crescem em mil e as árvores que se engrossam e protegem tudo com sua folhagem pacífica, amante da brisa. É um mundo de vida que dá boas vindas ao dia, como se cada cor de cada pétala, tão diversas entre si quanto um mundo é de outro, fosse a certeza de que ali os mortos são felizes.
A quem se ajoelha para rezar pelos que amam, as lápides protegem com sombras compridas, como fariam arranha-céus em uma metrópole diferente. E vejo as linhas que o sol desenha com tais ilusões: palácios na grama, campos infinitos sobre os quais os pombos caminham, e a sombra de uma rosa se transforma em um grande jambeiro sob os quais os amantes se confessariam.
Laborum meta*.
Eram visões do submundo, ou seriam de um sobremundo, ao contrário do que diziam os templos?
Bem-te-vis e japiins se juntam em um coro sem forma, invisível, mas que o ouvido pegou de imediato. Contaram a história dos que se foram, que de tão sofridas se exprimiam quase como um longo lamento na garganta dos pássaros, mas essas eram histórias de outrora, eles já não sofrem.
Laborum meta.
E como quem não sofre, o vi chegar até mim, não menos sombra do que as sombras, não menos luz do que as luzes. Sabia que já o vira, nem que fosse uma única vez em um sonho, e como em um sonho, me tomou as mãos, o quadril, e dançamos os passos que este mundo não conhece, sob o forte sol do meio-dia, na hora sagrada em que ninguém está disposto. Eu estava, e ele também.
Seria dele a voz dos pássaros? Seria dele o toque de nuvem que me segurava tão firme, tão seguro, me trazendo de novo e de novo a lembrança que só tinha de um sonho? Era sonho? Se fosse, o beijo que me dera antes de desaparecer atrás das mangueiras, quando já passava do meio-dia, nada além de um traço de poesia?
Laborum meta.
E nos breves instantes que estive em seus braços, eu não só soube o que era lembrar de alguém que amei dentro de um sonho, tampouco o gosto das flores mais frescas que me deixara nos lábios, mas também de como seria, um dia, verdadeiramente estar em paz.
* Em tradução livre do latim, "o fim dos trabalhos". Inscrição posta acima dos portões de ferro do cemitério São João Batista, em Manaus.
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O brinde de Todos os Santos
FantasyDiz-se que os mortos andam com os vivos entre 31 de outubro e 2 de novembro. Se for verdade, quem você gostaria de rever? Que tipo de coisa gostaria de saber? Os três contos de "O brinde de Todos os Santos" trazem histórias de fantasmas que aparecem...