Franca

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Seu nome era Franca, e eu só soube disso anos depois, quando perguntei de meus pais quem era aquela mulher no cemitério, com as flores na mão.

Não lembro de já tê-la visto antes, ainda que brincasse na poeira que os carros levantavam ao passar pela São Vicente. Na secura de setembro, era mais poeira ainda, mas nada que me impedisse de dar oi aos vizinhos, mas dona Franca eu nunca tinha visto antes.

Pelo menos não até rodar a notícia de que um homem fora baleado pela polícia, três tiros no peito, tomado por ladrão. De repente, a rua havia ganhado um jardineiro, seu Inácio, homem bom, sempre dava bom dia, e Franca perdera seu companheiro na vida. Teriam ambos sempre morado na casinha a esquina, com as samambaias pendendo no teto e as costelas-de-adão engrossando nos vasos?

Tinha tudo que era repórter na casa de Franca, e criança que é criança bem quer saber de tudo. Mas comigo foi diferente: naquele vucu vucu, vi os olhos pálidos daquela mulher a quem ninguém dava tempo de chorar. Teriam me visto também?

Teriam me visto brincando na rua, ao passo que eu não os vira nunca?

Seria eu o cego?

Seu Inácio, que até então não sabia sequer que existia, virou cidadão, virou santo, e Deus sabe como precisamos de santo. Tinha até polícia na procissão de seu defunto, e eu não lembro de ter visto o bairro todo na rua de uma única vez, até Franca, que eu não conhecia.

Ia rodeada, mas ia sozinha, o rosto escondido debaixo de um chapelão branco, uma flor branca servindo de rubi naquela coroa de palha fina, e sua pessoa tinha sobre mim o mesmo poder que a terra sobre o fruto que cai.

Mas nem ali chorava, e talvez não quisesse.

Lembra, era setembro, o sol a pino, a poeira no ar, então ninguém se demorou no desfazer do cortejo de seu Inácio, nem a presença e nem o pesar. Mas Franca ali ficou, e eu de longe. Parecia uma fada ali, toda cercada de buquês de caules compridos, os olhos vendo mais do que havia no mundo. E não me via mais do que eu a via enquanto seu marido era vivo. Teriam mesmo estado sempre ali na esquina, na casa de madeira que eu sequer lembro que existia?

Ela estava lá, só ela e o jazigo cinza, sólido, mais sólido era seu peito, que mantinha as lágrimas guardadas, bem juntas da lembrança. Quase não vi o fim da tarde chegar, pois olhar Franca e a lápide era olhar o tempo dobrar-se sobre si mesmo, uma ampulheta cuja areia caía embaixo só para repor-se acima. Ela nada fazia até que o sol deu sinais de que se despediria, foi quando começou.

Os buquês ela desfez, separando os caules maiores. Gérberas, margaridas, girassóis... ela tinha o cuidado de escolher as flores que traziam nas pétalas algum restinho de manhã, um gosto de verão, e juntou-as novamente, e por meio instante pensei que tivesse enlouquecido.

Estaria se casando com o defunto?

Mas não, ela não segurou seu arranjo com as flores para cima, mas para baixo, fez o sol beijar a terra. Com as pétalas à moda de vassoura, varreu o jazigo do marido, espanando a poeira de setembro, os pêsames de papel e os pesares da vida. Varreu, e o fazia como se rezasse, cada ir e vir da vassoura em flor como um esconjuro, deixassem o marido dela dormir em paz que ele ia cedo mas não ia pesado.

E o fez suando, o fez cantando - com um sorriso na voz - alguma moda de viola que agora eu não lembro, mas que eu sabia ser a mais bonita do mundo. Ao terminar o trabalho, pegou da bolsa uma garrafinha térmica de plástico, daquelas que a gente usa a tampa de copo, e serviu a si mesma um bom gole de café.

Mesmo longe, senti o cheiro forte, mistura de terra com fogo, mas que me sacudiu e lembrou de que eu estava ali já quase o dia todo, e minha cabeça girou de fome. Estava zonzo de um jeito que das duas uma: ou Franca juntara suas coisas e nunca mais voltara sequer para a casa de madeira da esquina ou montara o buquê e se fora embora, rumo à lua.

O brinde de Todos os SantosWhere stories live. Discover now