CAPÍTULO 1: Newton quem disse

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Não fui eu a dizer que algo tende a permanecer em seu estado atual a menos que ocorra alguma interferência. Foi Newton. A física e sua ciência que rege a vida e o mundo. É bem simples quando se analisa a questão por essa perspectiva. Ana era um corpo em repouso, seu acomodamento e toda a rotina de ações lhe conferiam isso, e a tendência natural deste corpo era permanecer no estado em que se encontrava. Então qual foi o agente que a retirou do repouso? Qual o catalizador desta explosão de atitudes anormais que nunca foram próprias dela?

Para mim ela sempre pareceu tão simples e clara em seus gostos e ações. Era cômodo observar aquele tipo de linearidade, rotineiro. Mas quando Laura e Beatriz apareceram na lanchonete do seu Antônio sem Ana, tudo ficou confuso por um instante. E só piorou mais quando, depois de comerem normalmente, foram embora sem que Ana tivesse aparecido.

Aquilo. Estava. Errado.

Era quarta-feira e ela sempre chegava uns dez minutos antes das amigas, sentava em uma mesa do outro lado da lanchonete em relação ao que eu ficava e tirava um livro da mochila verde musgo. Eu nunca conseguia ver o nome de nenhum, porque ela é do tipo que usa aquelas horrendas proteções de tecido para capas de livros. Mas isso não importava mais, porque ela nem chegou a estar ali, lendo um livro qualquer até as amigas chegarem, ela simplesmente não foi e tudo pareceu bem normal para Beatriz e Laura, como se algo que fazem sempre da mesma maneira pudesse ser apenas mudado.

As coisas não podem ser assim, existem regras no universo, leis que têm de ser cumpridas, como Ana e eu sermos os únicos na lanchonete por quase dez minutos; como ambos ficamos em lados opostos mas frente a frente, lendo nossos livros (o dela com capa de tecido e o meu sem); como apenas se escutam os sons vindos da cozinha, panelas batendo, fritura e liquidificador; e, quando nosso tempo está prestes a acabar, os carros dos pais buscando seus filhos passando ao lado das janelas, as buzinas, o ronco dos motores, e então tudo se esvai quando as companhias de Ana chegam, e logo depois muitos passos e vozes, e aquele lugar fica repleto de adolescentes felizes por terem sobrevivido a mais um dia de aula, um dentre eles é meu amigo Lucas, que apenas se senta ao meu lado enquanto joga a mochila em cima da mesa e reclama sobre qualquer coisa.

A lanchonete fica cheia demais e tudo o que eu normalmente consigo ver é Ana levantando a mão esquerda com o dedo indicador esticado para cima pedindo um momento às amigas, até que ela, provavelmente, termine a passagem que estava lendo, como qualquer um em sã consciência faria.

Eu sei que comecei falando sobre Newton e o estado de repouso de Ana, e depois como ela saiu disso de repente e já me distraí contando nossa rotina dos almoços às quartas, mas tenho que explicar como era antes pra ficar claro o porque de não se poder simplesmente mudar. E o motivo é que aquilo era um ritual semanal para mim e eu acreditava ser o mesmo para ela. Só que Ana sequer cogitou o quanto isso iria interferir no meu dia, na verdade, no resto da semana toda.

O pior de tudo é que eu tentei me enganar. Fui para casa um bom tempo depois de Laura e Beatriz saírem, sem nem ter conseguido comer e ignorado todas as tentativas de Lucas em iniciar uma conversa. Tudo o que fiz se resume em ter ficado tentando reformular as coisas na minha cabeça, que mais parecia um fone de ouvido guardado na mochila. Sabe, você o enrola perfeitamente e o coloca com o maior zelo possível em um compartimento seguro e, minutos depois, quando precisa dele só encontra um emaranhado de fios enroscados que dão vontade de desistir de viver por um segundo.

Passei o restante da tarde no meu quarto pensando sobre como pude deixar algo tão banal me incomodar daquela maneira. É claro que tenho meu dia a dia planejando, tenho metas de vida e viver sem ordem não me levaria à nenhuma delas. Preciso ser meticuloso se quiser ser aprovado na universidade, ter um bom emprego, casa e carro próprios, estabilidade. Mas posso fazer concessões também, abrir mão de uma tarde de estudos para ir até a casa do Lucas jogar qualquer jogo estranho que ele tenha encontrado na semana. Ou então provar alguma nova receita medonha que a Ceci tenha inventado (agora que resolveu ser vegana) e que com certeza vai estragar o meu apetite para o almoço após a aula, ou até mesmo qualquer outra coisa ingerível por um bom tempo.

A parte que não se encaixa em lugar nenhum é: em qual momento alguma coisa que Ana Bragança faça (ou deixe de fazer) pôde vir a interferir em minha vida perfeitamente organizada?

Não deveria ter sido assim e talvez por isso eu fiquei tão assustado a ponto de pensar que poderia estar apaixonado por Ana, o que seria completamente insano de se dizer agora.

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