Ok. Talvez eu esteja mesmo apaixonado por Ana Bragança. Afinal, a primeira aula da manhã tinha acabado e eu ainda não sabia qual tinha sido o conteúdo da mesma. Você quer saber o porquê? Eu duvido muito, mas vou dizer mesmo assim: ela não estava lá. E, veja bem, ela sempre esteve lá. Obviamente não naquela sala em específico, mas na mesma turma que a minha e sempre, sempre, nas aulas de biologia.
Nunca prestei muita atenção em Ana durante as aulas. Ela estava lá, assim como várias outras pessoas dentre as quais eu até conversava com algumas, o que não fazia com ela. Mas a biologia com certeza era diferente, ou pelo menos assim eu pensava.
Certa vez, quando éramos bem mais novos, nossa classe foi dividida em grupos por meio de um sorteio para fazer um trabalho dessa matéria. O que basicamente significa que ninguém ficou com os amigos que queriam estar, e todos odiaram a professora Marli por isso. Inclusive eu.
Os grupos eram compostos por quatro alunos que deveriam representar, de maneira livre, um órgão e seu funcionamento no corpo humano, tendo uma hora para pensar em como fazer qualquer-coisa-que-fosse-aquilo e ensaiar. Depois, cada uma dessas equipes iria se apresentar para o restante da turma conforme a ordem narrada pela "grande história do magnífico corpo humano" segundo a professora, não nós.
A tal grande história não era nada além das funções de cada órgão do corpo e, conforme ela insistia em dizer "É para mostrar que todas as partes são importantes e também desenvolver suas mentes com uma atividade lúdica". Enquanto ela sorteava os integrantes dos grupos e, logo em seguida, o respectivo órgão de cada um destes, eu só ficava me perguntando como seria a apresentação de quem fosse responsável pelo apêndice: "Oi! Me chamo apêndice e posso ser removido por não ter mais nenhuma utilidade além de ter uma inflamação com meu nome. Fim." Então, só me dei conta de quem seriam meus parceiros quando alguém já chamava meu nome.
— Ei! Você é o Oliver, né?! — Um garoto alto demais para a sexta série perguntou enquanto me cutucou no braço.
— Sou. — O encarei com desagrado. Sempre odiei pessoas que conversam encostando em mim como se eu fosse uma tela interativa.
— Você parece espertinho. Escreve logo o que temos que fazer e vê se me deixa com o papel principal, manezão.
Eu queria retrucar, tirar dele todo aquele ar de superioridade, mas nunca fui idiota e não iria procurar briga com alguém que parecia estar fazendo a sexta série pela terceira vez.
— Denis, para de ser chato, ou vou falar pra sua mãe e você já sabe o que vai acontecer... — Uma garota baixinha, de cabelos bem pretos e curtos apareceu em defesa da donzela em perigo que eu era ali — Oi Oliver. Sou a Cecília, mas ninguém me chama assim porque parece nome de gente velha. Pode me chamar de Ceci.
Por um instante quis abraçar aquela garota que tinha acabado de me livrar de uma surra após a aula, afinal bastava olhar para mim, tão magricela e desengonçado que parecia poder quebrar ao meio até com um vento mais forte, além da voz um pouco fina pelo início da puberdade, para saber que até ela tinha mais chances em uma briga do que eu.
— Oi, Ceci. — Falei metade feliz, metade aliviado.
— Não liga pro meu primo Denis, ele é um cocô. — Ceci me dirigiu um sorriso, depois olhou para trás de mim — Ei, você também está no nosso grupo?
Quando me virei percebi que era com Ana que Ceci falava agora. Ela estava a poucos passos de mim, com o cabelo castanho escuro amarrado no alto da cabeça, tinha um caderno nas mãos e nos olhava como se só agora tivesse notado nossa presença. Eu sabia que tinha estudado nas mesmas turmas que ela desde que me lembro, sabia seu nome e não muito mais do que isso. Ela deveria ser uma estranha tanto quanto os outros dois, mas não era.
— Oi. Sou a Ana. — Ela se aproximou de nós e mostrou o caderno — Nosso órgão é o intestino grosso. Aprendemos sobre ele faz duas semanas, se lembram?
Ceci e Denis negaram com a cabeça, eu disse que sim.
— Bem, é tipo a última etapa que o alimento passa em nós, onde o... — Ela confere o caderno rapidamente — Onde o bolo fecal passa para ser expelido.
— Então, resumindo, é onde passa o cocô... — Ceci me olhou de uma maneira que nunca esqueci, era a sua expressão de "plano maléfico" que tanto me faz rir até hoje. E eu, mesmo sem a conhecer, sabia o que ela pretendia fazer, Ana também entendeu e deu um risinho em concordância.
Denis foi um excelente Bolo Fecal viajante pelo intestino grosso, e só descobriu o que era esse tal "bolo sei-lá-o-que" algumas semanas depois. Por sorte eu já era amigo de Ceci e estávamos sempre juntos, mas ainda levei uns petelecos num vestiário depois de dois meses. Ana apenas voltou a ficar com as próprias amigas, nos cumprimentamos por um tempo, como se compartilhássemos um segredo, depois aquilo passou e voltamos a ser os quase estranhos que sempre fomos um para o outro.
Aquela uma hora de preparação da tal atividade lúdica de encenação foi a única vez que eu e Ana trocamos palavras, não muitas, claro. Já que o objetivo era não alertar nossa vítima. Mas nunca me esqueci deste dia porque:
1. Eu odeio Denis até hoje.
2. Ceci passou a ser minha melhor amiga.
3. Ana disse que Biologia era sua matéria favorita, e seus olhos castanhos brilharam enquanto fazia isso.
Entendo que todo mundo sempre gosta mais de uma aula que de outra, e há até mesmo quem não goste de nenhuma. Só que eu nunca soube o motivo para que Ana gostasse de Biologia e isso me perseguiu por muito tempo, depois ficou adormecido. Eu poderia ter perguntado, só que não queria demonstrar muito interesse pelas coisas que ela dizia, afinal não éramos amigos. Mas hoje, com ela não estando mais aqui, essa coisa toda voltou como um enorme sino em um campanário que é minha cabeça, e está tocando tão alto que parece ter me ensurdecido para o mundo ao meu redor.
Ana gosta de Biologia.
Ela sempre esteve nessa aula.
Mas não hoje.
Não consigo imaginar um motivo plausível para que ela perca sua aula favorita, ainda mais quando faltam poucas semanas para o início do período de vestibulares. Não sei em qual curso ela pretende ingressar na universidade, nem ao menos sei se ela pretende fazer isso. Mas se for, é quase certo que aquilo que fez seus olhos brilharem cinco anos atrás ainda esteja entre as matérias que valem mais nota para ela.
Será que ela está doente? Morreu? Talvez tenha sido alguém da família...
É tudo o que consigo pensar: doença e morte.
Nossa... Desde quando me tornei tão mórbido? Ela não está morta, nem ninguém tão importante para ela. Laura e Beatriz estavam na sala, agindo naturalmente como se nada estivesse faltando, assim como fizeram no dia anterior.
Será que elas brigaram e Ana mudou de colégio?
Isso não importa! Nada disso importa!
Ana nunca foi importante e quem perdeu a aula não foi apenas ela, mas eu também. E isso sim é alguma coisa. Terei que pegar o conteúdo com Lucas e compensar estendendo os estudos da tarde para até parte da noite, já que na quarta também não estudei em casa.
E que diferença me faz ela estar ou não naquela sala? Ela também não esteve na lanchonete e eu sobrevivi. Porque ela não é nada para mim assim como não sou nada para ela. Somos apenas duas pessoas que estudam na mesma turma, dois ex-parceiros de grupo que formavam uma dupla de glândulas de mucosa para o Sr. Bolo Fecal viajar mais facilmente. E ninguém quer ser amigo de uma glândula de mucosa. Ninguém.
O restante da manhã de aulas pareceu passar estranhamente dentro do normal, mas eu sabia que não era verdade, porque ela não esteve lá também e todo o resto fez menos sentido por isso. E, ainda assim, eu tentei me enganar com as mesmas ideias idiotas do dia anterior de como aquilo não passava de algo momentâneo e tudo estaria normal logo dia seguinte. Mas mesmo que não estivesse, tudo bem, porque ela não era importante. Como se eu pudesse ignorar o que todos os meus neurônios insistiam tanto em me dizer incessantemente, como se pudesse simplesmente fechar os olhos aos últimos acontecimentos e seguir em paz. Mas eu não podia. E continuei tendo a horrível sensação de não seria um evento único.
Talvez tudo estivesse prestes a mudar e eu não fazia ideia do porquê, mas podia sentir.
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Novela JuvenilAna Bragança é tão sem graça que eu só poderia imaginar o nome dela sendo publicado em um jornal se fosse nos obituários. E é uma merda estar apaixonado por alguém assim. ~~~ Plágio é crime, amiguinhos, não façam isso!