01 × Nunca

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Acordo na terceira chamada de Eric, nem as batidas pesadas de Greta Van Fleet ecoando no celular debaixo do travesseiro são capazes de me despertar facilmente e o meu amigo sabe bem disso, de modo que não desiste de ligar até ter certeza que não vou perder a hora.

-- Acho que eu não precisava atender, só desligar na sua cara deveria ser o suficiente. -- Digo com a voz embargada.

-- E perder a chance de escutar essa voz maravilhosa logo cedinho? Meu dia não seria tão perfeito.

-- Vai se foder. -- Respondo com uma risada antes de desligar.

Hoje em especial eu estou morta. Não fossem as convenções sociais, sinto que poderia ir para a escola da forma como estou, camiseta desbotada de algum super herói que roubei do Eric há eras, cabelo mais parecendo um ninho de pássaros e a cara inchada. Mas pela moral e bons costumes eu me obrigo a levantar, vestindo a uniforme terrivelmente padronizado do colégio, completando com um coturno e uma jaqueta de couro. Não há muito a ser feito com o cabelo, a não ser jogar para o lado e dizer que aquela desordem é proposital e compõe o look. Saudades de ser A Nerd Invisível.

Jules apenas revira os olhos quando me vê descer as escadas, e joga uma pilha de panquecas azuis salpicadas de morangos. Eu rio, me dirigindo a Emma.

-- Azuis? Por que?

-- Papai disse que a mania das comidas cor-de-rosa era sexista, agora é um dia para cada cor.

Emma é a filha mais nova de Jules, e há pouco mais de dois anos veio morar com a gente. Ela é daquelas crianças que usam cadarços coloridos e vão para a escola com uma tiara na cabeça. Tudo bem, a garota só tem seis anos, mas nessa época eu preferiria morrer a ser elogiada pela professora na frente da turma. Emma aos seis anos é mais popular que eu aos dezesseis. Pego o celular enquanto Jules se distrai na cozinha para mandar uma mensagem a Theo, mais uma na verdade.

[VALE] 23:08 ✓✓ Já dormiu?
[VALE] 06:34 ✓✓ Vai passar aqui?
[VALE] 07:03 ✓✓ Ok amor, eu vou com o Eric hoje. Te vejo lá <3

Eu sou mesmo muito burra.

Antes mesmo de mandar uma mensagem para Eric eu ouço a buzina costumeira la fora. Me despeço com um beijo na testa de Emma e saio comendo um dos morangos do prato. Eric me espera no volante da caminhonete vermelha.

-- Finalmente, - Ele brinca. - achei que aquela sua madrasta gostosa tinha te cozinhado.

-- Por favor, não chame a Jules de minha madrasta e nunca mais mencione que ela é gostosa.

-- Comentários sobre ela ter idade para ser sua irmã mais velha e não saber diferenciar um Xerez de um Cabernet também não são bem vindos né?

Prefiro ignorar. Eric é do tipo brincalhão 24 horas por dia, se levasse em consideração tudo o que ele fala nós nunca seríamos melhores amigos. Mas ele fica sério quando percebe minha cara amarrada e muda o tom.

-- O que foi?

Suspiro e olho pela janela, conforme passamos as casas sempre idênticas do subúrbio.

-- Você viu os stories da galera? De ontem a noite.

Eric se desvencilhou. Ele odiava quando o assunto era Theo. Mesmo assim continuei.

-- Eu achei que ele tinha parado com as mentiras. Já estamos juntos a quatro meses e toda semana é uma briga diferente, uma mancada nova que ele dá. Já cansei disso.

-- Você sabe o que tem que fazer, Valerie. Já tivemos essa conversa umas cinquenta vezes. -- Ele resmungou, olhando fixamente a estrada a sua frente. -- Que inferno

-- Porra Eric! Eu não quero a sua opinião, me desculpa. Você perguntou o que tinha de errado, e só.

Por sorte a discussão - e essa conversa com certeza se transformaria em uma - foi interrompida quando Eric estacionou. Alguns alunos aproveitavam a luz do sol antes de o sinal bater, e não foi difícil encontrar o time de futebol reunido nas escadas. Theo usava um óculos escuro, provavelmente por conta da ressaca. Maldito físico de jogador, ele era lindo. Meu coração pulava no peito e eu sorria só de ver aquela montanha de músculos vindo em minha direção, jogando o cabelo, na altura do ombro, para trás.

-- Oi am... -- Minha fala foi interrompida com um beijo bruto, feroz.

-- Vocês são nojentos. -- Ouço Eric em algum ponto atrás de mim. Theo mostra o dedo do meio antes de resolver ignora-lo completamente e jogar o braço por cima do meu ombro, me arrastando pra longe.

-- Eu estarei na biblioteca! -- Eric grita antes de sumir do meu campo de visão.

Eu e Theo seguimos até o nosso lugar de sempre, no bosque perto das mesas de piquenique. Ele não fala muito, e eu resolvo não mencionar o assunto ontem a noite por enquanto.

Eu me sento em uma das mesas, jogando a mochila em nossos pés. Theo me encara, da mesma forma que um garoto encara possessivo o brinquedo favorito.

-- Você fica bonita desse jeito. -- Ele aponta para mim, sem um ponto específico. O mais perto de um elogio em muito tempo. Conheço-o bem o bastante para saber o joguinho dele. Vou direto ao ponto, antes que me distraia.

-- Por que não respondeu minhas mensagens?

-- Tive problemas com o celular. -- Sua expressão se fecha, sombria.

-- Não foi o que pareceu quando abri o Instagram hoje de manhã.

Ele ri, e me encara com escárnio.

-- Tava me vigiando, meu amor?

-- É um pouco difícil não saber o que você anda fazendo quando eu recebo um direct as três da manhã daquela sua amiga!

-- Brenda? -- Ele se altera. -- Não acredito que te mandaram aquele vídeo. Derek tá fodido.

-- Brenda? -- Eu me levanto, saindo de perto dele. -- Eu falei da Rebecca! Mas acho que não me importo em saber quantas foram.

A festa da noite anterior (que para variar eu não havia sido convidada) pelo visto tinha rendido. Eu estava furiosa, e não por meu namorado ser um grande filho da puta, disso eu já sabia. O problema era isso ser público. Isso me incomoda. Eu suportei - até determinado momento - casos a parte, festas em que ele estava bêbado demais e mal se lembrava como tinha chegado em casa, ou as fotos no celular, que bem, Amor, elas me mandam e eu bloqueio. É só isso. Mas agora estava insuportável. Eu comecei a balbuciar alguma coisa, e como sempre ele sou interrompida por aquelas palavras sussurradas.

-- Eu não quero ficar sem você, Vale.

O tom é baixo, lento como a mão que me envolve em um abraço. Em segundos ele está com o nariz frio em meu pescoço, implorando carícias, e então em o envolvo em um beijo terno, como quem concede perdão. Eu o amo, esse é o principal problema.

-- Você não vai, nunca.

Eu quase me arrependo da promessa.

Meu Melhor AmigoOnde histórias criam vida. Descubra agora