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03/08/2016

6:54 A.M.

Tap. Tap. Tap.

O baque surdo acompanhado do ganido estridente produzido pelo contato da sola emborrachada do coturno branco com o piso protegido por um cobertor de lajotas da mesma cor ecoava pelos corredores mórbidos e fantasmagóricos do prédio velho - hoje usado como despensa para não dotados de consciência e sensatez.

Gerard caminhava pelos corredores calmamente, rumando para a ala mais afastada de todo o complexo "hospitalar". A ala dos problemas mais graves da mente humana.
Como estava com a cabeça baixa, olhos fixos nos ladrilhos antes brancos, - agora encardidos pelo tempo - enquanto pensava sobre como ajudar seu paciente, chocou-se contra outro corpo, derrubando sua prancheta, a qual analisava com afinco.

Ray Toro, seu colega de trabalho.

― Gee! Bom dia! ― exclamou Toro enquanto ajudava o mais velho a recolher alguns papéis que voaram de suas mãos com o impacto.

― Bom dia Ray! Desculpe-me, tenho que começar a olhar por onde ando! ― sorriu Gerard, enquanto ajudava o outro a pegar suas coisas.

― E então? Algum avanço com seu garotinho? ― perguntou, referindo-se ao paciente pelo qual Way era responsável.

― Sim, faz bons oito meses que ele não tem nenhum surto de raiva ou coisa do tipo! ― o mais velho falou orgulhoso enquanto levantava-se junto do outro ― E você? Alguma novidade sobre Mikey?

― Sim, conseguimos diagnosticá-lo... ― Ray suspirou.

― E.…? ― encorajou-o a continuar.

― Ele tem Autofagia. É uma síndrome que faz a pessoa sentir prazer em amputar seus próprios membros. – explicou o médico mais jovem.

― Meu Deus...e já sabe como tratá-lo? ― indagou Way, visivelmente preocupado.

― Não. No início pensei ser a Síndrome de Lesh-Nyhan, ou SLN. É uma síndrome que ataca o cromossomo X, o que faz com que o paciente muitas vezes se automutile. Porém, quando lhe perguntei sobre o porquê fazer isso, me respondeu que era prazeroso. Então passei a mantê-lo com uma camisa de força. Mas de alguma forma, Mikey conseguiu roer o tecido da camisa e chegou no ombro, de onde arrancou um pedaço. Então tentei mantê-lo sedado, mas assim que o efeito do remédio começou a enfraquecer, o garoto mastigou o dedo indicador até chegar ao osso, e quase conseguiu arrancar! ― Toro explicou, exaltando-se no final do discurso. ― Gee, eu não sei mais o que eu faço! Se ele continuar assim, vai morrer de hemorragia ou uma possível infecção pela própria saliva, mas se eu o mantiver dopado o dia inteiro, uma hora seu fígado não aguentará mais tantos medicamentos corrosivos.

― Realmente, Ray, é uma situação difícil. O jeito seria, talvez, prender algo em sua boca, um tipo de focinheira que ele não conseguisse tirar. ― opinou e recebeu um olhar assustado do colega.

― Mas... Isso é coisa para animal! ― exaltou-se o mais alto.

― Eu sei que não é a opção mais ética, mas é a mais eficiente...

― Você tem razão... ― suspirou o outro. ― Obrigado, Gee.

― Por nada, Ray ― sorriu. ― Agora, vou ver o baixinho. ― Gerard referiu-se ao paciente.

― Tudo bem, mas lembre-se, psicopatas não são loucos, eles têm total consciência sobre seus atos. ― alertou o enfermeiro mais jovem.

― Ray, ele é um ser humano como nós dois, temos de tratá-lo bem, apenas com um pouco mais de cautela! ― ralhou Gerard, olhando feio para o mais alto.

― Desculpe, vou experimentar o que me falou... Sobre a focinheira. Até mais tarde... ― Ray agradeceu e virou-se de costas para o mais velho, logo seguindo par outra ala em passos leves e silencioso como de costume.

― Por nada... ― murmurou baixo para si mesmo, já que o colega desaparecera ao virar um dos corredores.

“Psicopatas não são loucos, eles têm total consciência sobre seus atos.”

A frase proferida pelo mais novo pairava sobre a mente do outro, como o zunido irritante de uma mosca chocando-se contra o vidro de uma janela.

Balançando a cabeça para os lados, negativamente, tirou tais pensamentos da mente e seguiu assoviando uma música qualquer até chegar a frente à porta cinzenta de número 472. Pegou o relatório que ficava em um quadro de acrílico ao lado da entrada, logo escolhendo a chave certa entre o molho grande preso a um dos passadores de cinto de sua calça. Encaixou a chave na tranca em seguida a girando, recebendo um “click!” vindo da fechadura. Empurrou a porta com calma, adentrando o recinto inteiramente tingido de branco-leite.

― Frankkie...? ― perguntou baixo, dirigindo-se para perto da cama, onde havia um corpo encolhido. – Está acordado, Frank?

– Bu! – levantou-se rapidamente, ajoelhando-se no colchão e abraçando fortemente o enfermeiro, ao mesmo tempo que um sorriso mostrando suas presinhas afiadas brincava em seu rosto, junto da coberta fina que cobria sua cabeça e corpo, como um manto.

Frank era um garoto de 16 anos que fora diagnosticado com Transtorno  de personalidade esquizotípica — comportamento excêntrico, pensamentos e crenças incomuns ou bizarras, sentimento de desconforto em ambientes sociais e dificuldade para ter relacionamentos íntimos —   aos 14, quando levou um amigo para sua casa, dizendo que o mesmo dormiria aquela noite com ele. De madrugada, foram ouvidos gritos e um choro alto. Ryan, garoto o qual Frank adorava, como se fosse seu gêmeo, foi encontrado com pés e mãos amarrados e mergulhado em uma poça do próprio sangue; esse que ainda escorria dos talhos fundos feitos na carne do garoto.

– RyRo! – Frank correu em direção ao amigo que caminhava calmamente rumo a sua casa, após o término das aulas.

– Frankkie! – exclamou assim que Frank parou ao seu lado com um sorriso de orelha à orelha.

– Ry, você está livre hoje? Queria que dormisse lá em casa!

– Ah! Não sei, talvez, tenho que ver com a minha mãe e com o Beebo... – respondeu o outro, fazendo uma careta para logo sorrir. A expressão alegre de Frank escureceu por um décimo de segundo, para logo voltar ao sorriso grande que cobria seu rosto.

– Vai! Por favor, Ryaaan! –  chacoalhou o ombro do mais alto. – Vai ser divertido, Ry, por favor, por mim!

– Se acalme, Frank, eu vou então! – Ryan riu.

– Ryan, você é o melhor! – comemorou Frank.
                               }•{

– RyRo, vamos brincar de uma coisa? – perguntou o dono da casa. Um sorriso travesso brotava em seu semblante.

– Como assim, Frankkie? – perguntou confuso. – Brincar de que?

– Feche os olhos! – sorriu o outro; um sorriso sombrio.

– Não! Por que? – Ryan indagou fazendo careta.

– Você não confia em mim? – Iero perguntou inocentemente, forçando os olhos a criarem falsas lagrimas de mágoa.

– Claro que confio, só nã...

– Se confia em mim, feche os olhos! – exclamou, indignado com a resistência do outro.

Ainda desconfiado, Ryan fechou os olhos, logo sentindo as mãos macias do amigo pegando em seus pulsos, seguido da sensação de algo áspero e pinicante.

– Frank! O que você está fazendo?! – Ryan abriu os olhos, espantado.

Era tarde demais. Suas mãos já estavam atadas fortemente e o sorriso maldoso de Frank abriu-se, junto do brilho felino em seus olhos. – Frank, me solta, isso não tem graça!

Sem dar ouvidos ao seu amigo, tirou o restante da corda de dentro de seu armário, amarrando fortemente os pés de Ryan; este que soltou uma reclamação dolorida, tentando se soltar.

– Frank, qual o seu problema!? – Ryan ralhou, irritado com o menor. – Desamarre isso, caralho! O que você acha que está fazendo!?

– Sabe, Ry, eu sempre quis sentir aquilo que as pessoas tanto falam. Felicidade, eu acho. Então, depois de um tempo longo ‘pra porra', eu consegui fazer um amiguinho! E adivinha só! É você! – o garoto falava tudo alegremente, enquanto percorria a extensão do quarto, de sua cama até o banheiro acoplado ao mesmo.

– E o que isso tudo tem a ver com você me amarrar!?

– Não interrompa as pessoas, Ryan Ross, isso é falta de educação. Como eu ia dizendo... – escorou-se no batente da porta, ainda de costas para o mais novo. – Você foi o único amigo que eu fiz em praticamente toda a minha vidinha medíocre. Você sabe que eu amo muito você e que nunca trairia sua amizade com outra pessoa, não é? Só que, por ironia do destino, um certo emo magrelinho, publicamente conhecido como Ryan, ou “amigo do moleque estranho”  resolveu se “engraçar” com  aquele ‘viado, Brendon Urie, correto?

– Frank, ele é meu namorado! Não muda nada em relação à nós dois! Deixa de ser doido! – Ryan elevou o tom de voz, completamente desacreditado. 

– Enfim, como eu disse, queria ser feliz, mas você acabou com isso, Ryan. Você é meu e de mais ninguém!

Irritado, Frank por fim adentrou o pequeno cômodo com detalhes em azul marinho e branco, seguindo até o armário espelhado, disposto acima da pia. De lá, tirou uma faca. O objeto brilhava de forma macabra com a pouca luz que vinha do quarto. Iero caminhou calmamente de volta ao cômodo anterior, parando ao lado do corpo do melhor amigo caído em sua cama; o qual lançou lhe um olhar assustado, alternando entre a faca e seu rosto, retorcido em um sorriso de falsa inocência.

– Frank, isso já perdeu a graça! – Ryan murmurou com o fio de voz que lhe restava.

– RyRo, a diversão ainda nem começou! – Frank falou emburrado, aproximando-se mais do corpo imóvel e amarrado.

Em um movimento rápido, a faca correu o braço de Ryan, este que soltou um arfar, mais assustado do que dolorido.

– Frank! Você está louco! Para com isso!

– Ryan, você é tão ‘lerdinho... – Frank riu consigo mesmo. Olhou para a faca suja de vermelho em sua mão. – Eu realmente achei que você fosse meu amigo, mas aparentemente você prefere aquele idiota de testa excessivamente grande. Tudo bem, sem problemas.

– Frankkie, você me solta daqui e a gente esquece que isso tudo aconteceu, ok? – pediu exasperado.

– Ah, pelo amor que você sente pelo Urie, tem como ser mais tapado? Eu só vou soltar você quando... Aprender algumas coisas. – fingiu mágoa. Expressão essa que se tornou raivosa em segundos.

Com força, puxou o corpo de Ryan de cima da cama, que caiu no chão com um baque seco, acompanhado de xingamentos.

Em um piscar de olhos a lâmina prata reluzente saia de dentro do corpo do mais novo, junto de um esguichar de vermelho vivo, o que arrancou de Ryan um grito agoniado.

– Shhhh! Ryan, não faça tanto barulho! – reclamou Frank. – Vai acordar meus pais!

– Por favor, Frank, para... Me solta daqui. – ganiu Ryan. O gosto metálico invadindo seu paladar.

– Acho que você ainda não aprendeu a lição, Pequena Lua.... – Frank colocou um bico nos lábios e riu em seguida. Limpou as gotinhas de suor que brotavam na testa com a manga da roupa e a lâmina suja na perna da calça. –... Aprendeu?

Ryan, de olhos semicerrados, assentiu com a cabeça algumas vezes, afirmando a pergunta. – Sinto muito, não colou.

Uma.
Duas.
Três facadas.
Um.
Dois.
Três pedidos por piedade.
Passos.
Batidas na porta.
Gritos.

– Frank! O que foi isso!? Frank?! Abra essa porta! – a mãe do mais velho gritava do lado de fora do quarto.

– FRANK IERO! ABRA ESSA PORTA! – seu pai bateu mais forte, já irritado.
Iero riu baixinho e desviou a atenção da porta para o amigo.

– S-socor-ro...

– Ah, Ry! Está tudo bem! Já vai passar! – Frank girou a faca no interior de Ryan, aumentando a poça vermelha e viscosa que nascia ao redor do corpo pálido e trêmulo de Ross. O grito estridente ecoou pela casa, junto do choro alto e cheio de soluços.

Os pais do mais velho tentando entrar; batendo e puxando a maçaneta da porta de madeira branca.
Rindo, Frank atirou a lâmina para o outro lado do quarto. Com calma, sentou-se no chão. O sangue escuro e fresco molhando suas roupas de cores escuras.

Com medo e o pouco de força que restava em seu corpo, Ryan arrastou-se - tentou -  para longe do toque de seu amigo; esse que logo pegou seu corpo, colocando-o em seu colo. Com os dedos magros, Frank acariciava docemente os cabelos levemente ondulados de seu amigo, manchando-os de sangue. Ryan respirava com dificuldade, com a lateral de seu rosto apoiado nas coxas do mais velho, cobertas pelo próprio sangue.

Com um sorriso terno no rosto, Frank acariciava o rosto e os cabelos do maior. Ryan encontrava-se entregue e completamente sem forças ao pequeno psicopata. Seu corpo tremia fortemente, o que causava uma sensação boa no outro.

Frank estava completamente imerso em seus prazeres, esses que eram ver seu único amigo assim, entregue a si, ver o sangue escorrendo de cada ferida feita com tanto capricho. Ver a dor e o desespero nos olhos do garoto que traiu sua amizade.

– Olha só, Ryan, – aproximou os lábios do ouvido do mais novo e sussurrou cínico. – nem doeu! Agora você aprendeu que não deve se envolver com ninguém além de mim, não é?
Ryan deixava as lágrimas de dor lavarem seu rosto - agora sem cor - livremente, deixando exposto seu desespero. Deixou que as palavras de Frank rodassem pelo quarto sem uma resposta.

Em um estrondo, a porta abriu-se, dando espaço à um casal com expressões irritadas, as quais foram substituídas pelo horror. Sra. Iero gritou ao presenciar a cena criada pelo próprio filho. Um sorriso irônico e sombrio rasgava o rosto dele. Manchas de sangue dispostas em sua face, roupas e quarto. Uma poça escura, aos poucos tomando conta do chão amadeirado. O corpo quase inerte de Ryan parcialmente no colo do psicopata, que lhe acariciava o rosto calmamente. A lâmina usada no atentado à vida do maior, agora jazia ao lado da porta, com seu brilho traiçoeiro.
   
                                 ***

- SOLTEM! TIREM AS PATAS DE CIMA DELE! – Frank berrava em plenos pulmões, rasgando suas cordas vocais e esfolando sua garganta. Lutava contra os enfermeiros do manicômio; o qual seria seu novo lar. Queria, a todo custo, ter por perto o corpo fraco de Ryan - este que passara a convulsionar -, queria-o apenas para si.

Ross forçava-se a manter os olhos abertos. Forçava-se a preservar o fio de vida que restava em seu corpo violentado por seu melhor amigo. Os médicos corriam para leva-lo ao hospital mais próximo, na tentativa de salvar uma vida.

Debatia-se de forma violenta, arranhava, mordia e esperneava. As mãos fortes dos enfermeiros mantinham-no preso, sendo arrastado para o furgão branco com o logo do manicômio. Os gritos de puro ódio, proferidos contra seus pais e os enfermeiros que lhe carregavam, além daqueles que tocavam em Ryan, saiam altos e desafinados.

                                  ***
Da primeira vez que Gerard ouvira tal história, forçou-se a acreditar, mas era algo um tanto fantasioso. Como um garoto tão carismático podia ter quase matado e causado graves fobias e traumas ao único amigo? Este mesmo era um garoto tão inocente e simpático!

Depois do ocorrido, a família de Ryan mudou-se para a Inglaterra, na tentativa de esquecer o acontecido e conseguir um melhor acompanhamento médico, pois com todo o ocorrido, Ryan desenvolveu fobia a toques e uma grave síndrome do pânico, além de não confiar em ninguém, somente seus pais.

– Como se sente, Frank? – sorriu o mais velho.

– Bem! – riu com a própria fala.

– Ótimo! E.…bom, como você vem melhorando mais a cada dia, hoje irei te levar um pouco no jardim. Quero que pegue um pouco de sol, vai te fazer bem, – anunciou o médico, sorrindo com o olhar espantado de Frank. – mas lembre-se, tem de se comportar, ok?

– Tudo bem, Gee!

– Muito bem, venha. – Gerard acenou com a cabeça, indicando de forma muda, para que o garoto o seguisse.
Frank levantou-se do colchão em um pulo, seguindo de perto o mais velho.

Em passadas calmas, Gerard dirigia-se rumo ao jardim traseiro da construção. Iero caminhava atentamente em passos curtos, gravando cada detalhe do labirinto de corredores por onde guiavam-se.

Gerard parou em frente a uma porta de vidro fumê. Empurrou-a expondo a vista de um jardim florido, com árvores e plantas de várias qualidades e cores diferentes, iluminadas pelo brilho dourado do sol. Pacientes e enfermeiros caminhavam calmamente por entre os canteiros pintados de amarelo, vermelho e verde das plantinhas delicadas que os adornavam.

– Você pode dar uma volta pelo jardim, mas não se afaste muito. Não saia da minha vista, ok? – Way curvou-se um pouco, focando nos olhos do mais novo.

– Tudo bem! – sorriu.

– Vai lá, divirta-se! – retribuiu o sorriso, soltando uma risada gostosa quando o menor correu para alguns pássaros que ciscavam na grama. Fazia um bom tempo que não tinha contato com o lado de fora daquele maldito prédio.




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A fic é uma oneshot, maaaas como ficou muito grande, eu resolvi dividir pra não cansar ninguém ♥

Espero não flopar :)

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