Portal para outro mundo

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Sem dúvida, qualquer pessoa que avistasse aquele garotinho loiro, de rosto miúdo, corpo franzino e olhos tão profundos como o mar, aparentando uns dez anos de idade, se questionaria a respeito das suas vestes, tão inadequadas para aquele momento. Como pode, sob temperatura tão baixa, desafiar o frio daquela forma usando apenas uma jaqueta preta, um gorro, botas gastas e uma bermuda que de tão rota e surrada deixava suas "canetinhas" pálidas à mostra, sugerindo já ter sido uma calça jeans que, para melhorar a mobilidade, precisou ser talhada na altura dos joelhos com alguma tesoura velha encontrada sabe-se lá onde.

David passa o dia inteiro no Hyde Park com seus amigos Sara, Anna e Ícaro, divertindo-se por toda imensidão do lugar que possui grandes árvores, além de um lago que o corta ao meio. Perdidos e ao relento, os quatro amigos encontraram no parque o refúgio adequado até que tudo voltasse ao normal. Assim, até que a situação se restabeleça e eles possam voltar para suas casas, David e os amigos permanecerão no acampamento improvisado no parque, às margens do pequeno lago – àquela altura quase congelado – cortado por uma ponte muito bem conservada por sinal.

...

Há dias David não tinha tanta comida como hoje. Por alguns minutos parece não se preocupar como o vento gélido, insuportável, ainda mais usando aquelas roupas atípicas. Bem, talvez ele não sinta tanto frio como a maioria das pessoas... quem sabe seja bem astuto e ande rápido o suficiente para não ser abatido pelo frio... a bem da verdade, talvez isso revele sua maior qualidade: a coragem.

Desde que se perdeu, David não conhecera alguém tão generoso quanto o senhor Landon Yang, que tinha estampado no rosto a origem oriental e nos fios de cabelo a revelação de que passava dos sessenta anos. Também era dono de uma modesta barriga, provavelmente, inchada de tanto pão, sem falar nos dentes, pois quase não lhe sobrara nenhum. Fora isso, transbordava simpatia como ninguém.

De fato, o senhor Yang não tinha a melhor padaria do bairro, mas sabia as quantidades exatas de trigo e fermento para produzir o pão mais saboroso das redondezas; por conta disso, o lugarzinho apertado estava sempre com muitas pessoas numa fila à porta, esperando as fornadas ficarem prontas para comprarem e saborearem os pães ainda quentinhos. Antes que a primeira leva de pães saísse do forno, ao alvorecer, a lojinha já contava com muitas pessoas do lado de fora, todas dispostas a aguardar uma vida inteira pelos saborosos pães.

– Senhor London, sete pães, por favor! – Guincha uma cliente com os cabelos ainda enrolados em bobes, por cima de ombros altos.

– Pra mim, quatro australianos, antes que acabem! – Avisa uma outra voz, já se debruçando sobre o pequeno balcão de vidro.

– Calma, um de cada vez! Temos pães quentinhos para todos até a segunda leva sair. – Diz o Sr. Yang, que conquista a todos com simpatia e impressiona pela agilidade ao ensacar os pedidos.

– Aqui está o seu. Próximo!

E assim segue o dia até as 18horas, quando as portas do estabelecimento são fechadas.

Desde que David e seus amigos chegaram no Hyde Park, senhor Yang se prontificou a ajudá-los com os pães que sobram. Tinha dias que sobrava a conta exata para os quatro amigos, mas desde que o inverno se intensificou a sacola sai sempre cheia quando a loja fecha. Ele até que gostaria de fazer mais pelos garotos, mas não tem onde colocá-los; no quarto, agora, mal cabe ele, e a loja não é um local apropriado para fazer de dormitório, então, ajuda-os como pode.

...

Mesmo com as recomendações das autoridades para todos permanecerem em casa, já que os noticiários especulavam que a tempestade de neve poderia superar a de 1978, que matou muitas pessoas em toda Europa, nada seria capaz de frear a empolgação da criançada com toda aquela neve estendida lá fora. Em alguns jardins era possível ver de uma só vez mais de dez crianças reunidas, encorajadas pela adrenalina da diversão, prontas para brincar. Elas sempre encontram diversão em tudo, mesmo não sendo o momento mais apropriado. Para as crianças é como se não existisse tristeza, a não ser por algo profundamente forte, mas esse não era o momento para lamúrias, queriam festejar no gelo antes que fosse tarde demais. Sendo assim, rapidamente se encarregavam de montar os mais variados tipos de bonecos de neve, algo no mínimo previsível para quem de fato buscava diversão.

Para Sempre DavidWhere stories live. Discover now