Jambar do Sol

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Naquela manhã, diferentemente do habitual, pelo menos desde que o inverno chegou, Julia atravessa o portão do prédio a toda velocidade em direção ao Hyde Park.

– Cuidado, Julia! Não corra tão depressa, querida! – Reclama Rebeca, segurando o gradeado para Josh, que vem logo atrás.

– Não vai querer passar o resto do inverno na cama com alguma fratura no corpo, né, filha?

– Não se preocupe, eu estou bem! Estou feliz agora! – Berra Julia, sem se dar ao trabalho de olhar para trás. Está tão obstinada em se divertir que nada nesse momento poderia roubar sua atenção.

– Vamos ficar sentados aqui, esperando por você. Não vá aonde não possamos vê-la, tá bom? – Recomenda Rebeca, insistindo nos cuidados, mas a garota já está longe demais para ouvir as recomendações condensadas pelo vento.

Julia parece ter aguardado uma vida por aquele momento, afinal, desde que a tempestade de neve chegou não tinha dado um único passo fora do apartamento. Finalmente, hoje o dia está perfeito e a menina poderá aproveitar boas horas no enorme parque. O céu já não tem mais a cor de chumbo, os raios de sol começam a respirar por entre as nuvens esparsas, dando esperança de o dia voltar à normalidade em grande parte da cidade. Ainda assim, a vizinhança permanece recolhida devido às baixas temperaturas. Todos preferem ficar debaixo da proteção de suas cobertas quentes a ter que se expor ao vento frio que ainda corta a face. Alguns gatos pingados, no entanto, andam para lá e pra cá, em direção à lojinha do senhor Yang, sempre britânica quanto ao horário de abertura. A primeira leva de pães ainda está sendo preparada pelo próprio senhor Yang. Da cozinha pode avistar a primeira cliente do dia a postos na fila que começa a se formar do lado de fora da padaria. Os clientes sabem que às 06h30 ela já está aberta, com pão fresco, saído do forno. A primeira cliente é uma senhora corpulenta e que se veste como uma grande cebola roxa, coberta por várias capas para se proteger do álgido enquanto permanece na fila. Quer garantir uma boa quantidade de pães ainda quentinhos para o café da manhã, afinal, não há como resistir a um cheiro tão bom se propagando por todos os cantos do bairro. E há também o aroma irresistível do chocolate quente, que em ocasiões especiais é colocado em um grande tacho, num canto da loja, para que os primeiros clientes possam se servir com uma caneca bem robusta, quantas vezes desejarem, e que acaba sempre por volta do vigésimo freguês. Em dias de chocolate, a lojinha fica apinhada de gente disputando uma caneca da bebida bem quentinha.

Julia dispara os primeiros cliques com a câmera digital. São flagrantes de pessoas que passam apressadas em direção à loja do senhor Yang e que, de tão rápidas, parecem tropeçar nos próprios pés. Enquanto isso, é possível ver a fila crescer cada vez mais na quadra de baixo. Fica por algum tempo fotografando todos que entram e saem com suas sacolas pardas cheias de pães. Passa quase dez minutos ali, absorta nessa atividade, talvez porque a lojinha seja o único lugar que continua reunindo tanta gente do bairro, diferentemente do parque, que anda relegado ao frio.

Julia está em busca de aventura naquelas horas matinais e se movimenta antes que possa escutar a mãe berrando que seu tempo acabou. Segue, então, a passos rápidos para o local onde os garotos habitavam o parque, pelos quais passava boa parte do dia cravada na janela, observando atentamente suas rotinas. Esta seria a oportunidade de conhecê-los e, quem sabe, fazer novos amigos num inverno tão solitário. No mesmo instante, a pequena desembesta em direção ao ponto que servia de esconderijo para os quatro. Do alto do morrinho, não percebe nenhum movimento próximo a ponte, a não ser o movimento das águas do lago cercado de gelo. A fogueira esmaeceu completamente e a lona rasgada que cobria a barraca veio abaixo.

– Será que eles morreram? – Indaga a menina, com um leve ar de preocupação.

No mesmo instante, desequilibra-se e escorrega de bunda até a parte baixa que leva às margens do lago.

Para Sempre DavidWhere stories live. Discover now