Rio Traiçoeiro

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No castelo de Irana, o silêncio é um dos moradores mais ilustres e raramente rompido, o que só acontece, por exemplo, com o tilintar dos talheres ao final das refeições solitárias.

– Mais um pouco de sangue! – Ordena Irana a uma serviçal de dentes à mostra como uma lhama e mesmo aspecto de um zumbi, que imediatamente se apresenta com um pequeno jarro metalizado, completando a taça.

– Podem retirar a mesa. – Diz ela assim que vira a taça.

Algumas outras figuras estranhas de zumbis que permaneciam enfileiradas do lado da mesa, avançam e recolhem os pratos e restos de comida deixados pela bruxa, retirado-se em seguida da enorme sala comunal. Irana está novamente sozinha, sob a luz das velas sustentadas por castiçais dourados distribuídos por todo castelo. Enquanto saboreia sua bebida favorita, seus olhos crivam no rosto petrificado e empalhado na parede, como se por um segundo aquela figura enigmática olhasse profundamente no fundo dos seus olhos.

– É uma pena você não poder me acompanhar, estava uma delicia! – Desdenha Irana, largando a taça de sangue sobre a mesa. – ...Você teve o fim que mereceu; morta e empalhada, admirando cada detalhe meu – Completa, como se pudesse ser compreendida. Levanta-se da mesa em seguida e segue na direção da escadaria principal do castelo, enquanto uma zumbi recolhe o último objeto deixado para trás.

No primeiro piso, quadros de todos os tipos estão espalhados pelo caminho, e todos enigmáticos por sinal, como o de um homem alto, claro e com bigodes que mais pareciam os fios longos de um cabelo feminino, segurando um enorme dragão negro, preso por uma grande corrente no pescoço, e de uma mulher semelhante a Irana, porém mais velha, abarcada em um trono, acompanhada por duas cobras negras enroladas em cada uma das pontas do trono. Por um segundo, Irana, que vinha logo atrás acompanhada por uma zumbi cabisbaixa, estaca bem em frente ao quadro da mulher misteriosa, como se desejasse passar longas horas ali, falando com aquela imagem. Decide, enfim, seguir para o quarto e antes mesmo que chegue à porta esta se abre, permitindo que a bruxa a cruze solenemente.

No quarto, uma claridade amena alumbra todo o espaço, além de uma grande janela com vista para o horizonte enevoado, que permite observar uma lua de sangue em meio a nuvens no céu. Uma escrivaninha serve de apoio para a varinha de espirais sutis, junto de duas serpentes entrelaçadas que estão dispostas em forma de arco na parede, similarmente ao exército de Odaques presos na parte de fora do castelo.

– Deixe-me a sós. – Determina Irana à mostrenga, que dá meia volta sem balbuciar nenhuma palavra.

Irana se acomoda na enorme cama ainda com sua varinha na mão. Sempre soube que o sono é fiel companheiro da morte, e ele nunca lhe deu motivos para confiar, pois até mesmo uma bruxa poderosa, quando num lugar onde ninguém mais habita, a não ser ela, as feras e os zumbis, deve se precaver contra os perigos de uma inesperada traição. Irana não demora a mergulhar em um sono profundo, que conduz seu corpo a uma levitação a poucos metros da cama, um repouso incomum até mesmo para uma bruxa das trevas. Enquanto isso, lá fora, o silêncio sepulcral reina absoluto.

...

O grupo de crianças e duendes que antes se fartava agora caminha pela floresta de abetos, percebendo alguns vestígios de neve espalhados pelas encostas das árvores e principalmente nas montanhas que se estendem ao horizonte.

– Vamos acelerar para atravessarmos o rio antes do anoitecer! – Anuncia Dom escorregando rapidamente por um declive.

Todos escorregam e seguem marchando no compasso do duende, que se mantém à frente, enquanto Edem, que vem como último da ponta, não hesita novamente em se aprofundar nas histórias dos garotos.

Para Sempre DavidWhere stories live. Discover now