#3: Tudo o Que Fazemos

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Mais um dia normal naquela pequena cidade cinzenta.

Seus habitantes caminhavam de um lado para o outro nas ruas tumultuadas. Seguiam de maneira coordenada para cada uma de suas prisões pessoais.

O sol não era visto no céu há tempos: o azul e suas poucas nuvens haviam sido substituídos pela fumaça escura dos veículos, indústrias e cigarros.

Em meio a todas aquelas pessoas, dentro de um vagão lotado de metrô, uma jovem ensaiava o seu melhor sorriso enquanto se dirigia ao colégio. Conforme o veículo avançava em seu caminho, seu coração pulsava de forma cada vez mais forte, inquieta.

Assim como lhe era rotineiro, Luana guardou seus sonhos e ideais na mochila e os trocou por uma máscara de consentimento.

O consentimento de ser alguém que não era, com o único propósito de agradar seus supostos amigos. De não ficar sozinha. A cada nova crítica, discussão ou brincadeira, uma parte da garota ia embora.

Ela havia aprendido a se deixar ir para que os outros não fossem. E de tal forma, ficou tão cinzenta quanto todos os colegas que a cercavam — e que secretamente também não conseguiam mais reconhecer a si mesmos.

O veículo avançou de forma silenciosa, carregando o peso de todas aquelas existências cansadas. A Estação do Consentimento era uma das mais difíceis de se cruzar: sempre havia carga em excesso ali.

Fora do vagão de Luana, assim que chegaram à Estação das Pressas, um homem de trinta e poucos anos caminhava pelas escadarias da estação de forma cadenciada, acompanhado por centenas de outros trabalhadores que faziam o mesmo.

Getúlio gastava três horas diárias no transporte público. Oito horas em sua função executiva na empresa. As outras horas? Alternadas entre o stress dos prazos que tinha a cumprir, as contas domésticas que ainda não batiam e o silêncio incômodo instaurado entre ele, sua mulher e sua filha.

Segundo o que os seus pais o haviam ensinado, aquilo era ser um alguém na vida. Mesmo que significasse não ser alguém na vida de quem realmente importava.

E para ele, estava tudo bem abrir mão de seu tempo assim.

Algumas das pessoas desembarcaram do veículo. O homem adentrou com vários outros das Pressas, atropelando tudo em seu caminho. Era rotineiro que tais pessoas não percebessem quando, devido à sua correria, esbarravam em alguém ou causavam algum outro problema.

As pessoas das Pressas eram bastante desatentas.

Alguns minutos se passaram. Os autofalantes anunciaram com uma voz crepitante que haviam chegado à Estação da Hesitação.

O trem não parava por muito tempo ali. Era a típica parada de embarque rápido, onde as pessoas costumavam perder a viagem por pensar demais — fosse pensar na problemática de achar um lugar ali dentro, ou em devaneios diários comuns.

As pessoas de Hesitação sempre esperavam por algo que não parecia chegar, fosse um vagão menos tumultuado, um lugar para sentar ou uma pessoa pela qual insistiam em aguardar. Às vezes, tal coisa chegava, mas a custo de grandes atrasos.

Naquela manhã, Vinícius acompanhou Marina até lá, como já era costumeiro.

Conforme os jovens avançavam, o rapaz sentia suas passadas ficarem cada vez mais pesadas. Mais difíceis. As palavras que tanto ansiava em dizer há tanto tempo estavam outra vez presas em sua garganta.

Três palavras, uma proposta: Eu te amo. Não era difícil assim.

Os dois se conheciam há tempos. Tudo no mundo parecia conspirar a favor deles: a forma que ela sorria quando eles se viam. A confiança que tinham desenvolvido. A capacidade que ambos tinham de descrever detalhadamente as razões pelas quais apreciavam tanto a companhia um do outro.

Mas as únicas coisas que Vinícius conseguia pensar eram as razões pelas quais ela merecia alguém muito melhor.

Quando chegaram à plataforma e as portas se abriram, um silêncio constrangedor se instalou entre os dois. A garota entrou no veículo.
Ambos sorriram mais uma vez um para o outro, despedindo-se.

Os pés e os lábios de Vinícius não se moveram mais rápido do que as portas do vagão. Naquela manhã, Marina embarcou sozinha mais uma vez. Novamente, o rapaz virou as costas e retomou o caminho para casa, retirando uma folha de papel e jogando-a no lixeiro mais próximo.

A Estação da Hesitação era famosa pela reciclagem de papel. Suas entradas mais comuns eram cartas de amor, propostas de emprego, ideias inacabadas e planos frustrados.

O trem avançou novamente. Passou direto pela deserta Estação das Grades, que sempre permanecia fechada.

Por algum motivo de acontecimentos anteriores ali, os moradores das Grades não julgavam mais aquele lugar como seguro, procurando a todo custo avançar por outras rotas para seus caminhos.

A cada novo dia, a estação se degradava mais e mais. As rodas do veículo rangeram enquanto passaram por seus trilhos enferrujados. As paredes pichadas, vidros quebrados e portas entregues a camadas de poeira davam uma imagem desoladora àquele lugar, que perdia pouco a pouco sua função.

O próximo embarque era um dos últimos. Na Estação das Possibilidades, pessoas perdidas passavam horas estudando as rotas que se destrinchavam dali, só para sempre escolher o mesmo caminho. Quem sabe o que aconteceria se fizessem diferente?

Rita era uma dessas pessoas. Por medo, havia recusado a possibilidade de viajar e viver em outro estado, longe de sua família e amigos. Havia rejeitado a chance de fazer o curso de seus sonhos por causa do medo, seguindo a mesma rota dos pais: era a quarta de uma linhagem de advogados.

Naquele dia, Rita embarcou no mesmo trem dos outros. O trem que levava à Mesmice.

Luana. Getúlio. Marina. Rita. Todos iam em direção à Mesmice.

O último embarque era um dos mais discretos. O embarque na Estação dos Sonhos. Não era uma das estações mais movimentadas, nem daquelas em que as pessoas prestam muita atenção. É a típica parada antes do seu destino, na qual a única coisa que os passageiros pensam é quanto tempo mais para minha descida?

Naquele dia e naquele trem, subiram um desenhista, um viajante, três leitores e dois músicos.

Getúlio tentou observar com o canto do olho os livros que os leitores carregavam. Lembrou-se que sua filha, Ana, adorava ler. Um sorriso brotou em seus lábios sem avisar, o que o surpreendeu um pouco.

Lembrou do quanto sentia falta de conversar com a filha.

Rita sentiu um peso em suas costas ao ver a mochila do viajante. Todos os selos colados ali, toda a coragem que aquele rapaz devia ter para seguir seu caminho fora dali, para onde quer que fosse.

Marina suspirou ao ver o desenho em que o artista trabalhava. No casal retratado em um banco, conseguia se ver com Vinícius, caminhando por aquela cidade. Ela estava pronta para embarcar naquilo, e não desistiria.

Por fim, os músicos começaram a tocar. Uma melodia suave e envolvente sobre seguir seu caminho. Sobre fugir do que te prende. Sobre ser quem você realmente é.

Getúlio começou a conversar com os leitores e perguntar sobre o que eram os livros. Rita pegou de dentro de sua bolsa os papéis amassados de editais e concursos distantes dos quais havia desistido.

Luana deixou sua máscara de lado. Fechou os olhos e deixou as lágrimas caírem por seu rosto enquanto ouvia a música que a envolvia, dizendo que estava tudo bem. Tudo bem ser ela mesma.

E Marina? Foi surpreendida por uma ligação repentina. Uma ligação de Vinícius.

A Estação da Mesmice chegou. Nenhum deles desceu.

* * *

Notas finais: Então. Pra esse terceiro capítulo do projeto que envolve as músicas, a da vez é "All we do", de Oh Wonder (Link já no texto!). É uma música que eu amo de paixão e um conceito que eu lutei bastante pra trabalhar com. Espero que a mensagem fique da melhor forma possível. ❤

Tudo Aquilo Que Um Dia Foi NossoWhere stories live. Discover now