Incubus - Arcanjo Rafael

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Segurou-a nos braços até o último instante e deixou sua alma dormente partir para a Terra. Foi lento como uma sinfonia que inicia com tímidos acordes e ela deslizando lentamente chegou a Terra na ponta dos pés enquanto os dedos das mãos apontavam paraísos imateriais. Nos últimos movimentos da música a orquestra tocava com fúria e volume, tudo encerrou-se com o urro de Rafael e o choro de quem acabou de chegar a esse mundo.

Foi um parto complicado, a médica chegou a duvidar que a menina sobrevivesse, surpreendeu-se com um bebê rosado e saudável. De certo modo essa forma corpórea também acalmou o Arcanjo, que permitiu-se o enlevo, decidiu copiar a amizade e carinho devotado pelos humildes anjos a seus protegidos, seria seu anjo da guarda.

 A onipresença não foi um dom concedido a ele, então precisava constantemente deixá-la para cumprir suas missões angelicais como Arcanjo. E parecia que ela crescia demais em suas ausências. Num Natal da década de oitenta – uma década excepcionalmente boa em festas – os pais da menina estavam na janela observando os fogos de artifício e Rafael decidiu aproveitar a ocasião. O Anjo da Morte se materializou e sentou no chão ao lado da criança, entre seus brinquedos, esticou o braço e serviu-se de alguns docinhos sob a árvore de Natal, reservados a Papai Noel. Com apenas três anos de idade, ela achou bem divertido conversar com a aparição.

Quando os pais voltaram a prestar atenção na filha, ela havia despido o vestido e os sapatinhos cor de rosa da boneca, vestido com um conjuntinho branco tamanho recém-nascido que já não cabia mais, sobrou apenas como uma lembrança guardada pela mamãe e para completar anunciou que o bebê se chamaria Rafael. Os pais a princípio ficaram assustados, porém concluíram que deveria ser coisa de criança depois que ouviram a narrativa do encontro.

Percebendo o próprio erro, Rafael disse a si mesmo que evitaria materializar-se assim novamente, conhecia histórias de pessoas que enlouqueceram e a amava demais para permitir isso. Sua resolução foi fazer unicamente aparições durante o sono, e deu início aos sonhos recorrentes e sequenciais que a menina contava à mãe. Ele a ensinou como voar nos sonhos, o trajeto mais seguro para a escola, e a ter medo de quase tudo. “Criou” a menina excessivamente medrosa, acreditando que ajudaria a protegê-la. Essa foi uma fase feliz para ele, os anos mais serenos de sua existência resumiram – se na infância dela. Ele sentia um amor total pela alma eterna que habitava aquele corpo e fez o melhor do que ele achava certo para proteger sua morada mortal de carne e osso. Foi seu anjo, mentor, amigo, o que precisasse.

Mas as crianças crescem, e um pouco mais tarde que outras garotas da mesma idade, ela também passou a ter interesse nos rapazes, curiosidade por amor e relacionamentos. O Arcanjo quase enlouqueceu de ciúme. Dentro dele cresceu sentimentos mesquinhos de ciúme e egoísmo, era como se de tão aferrado a existência mortal da garota, ele próprio estivesse sendo tomado das piores nuances da essência humana. Sem permissão superior invocou um gato preto, um ser que existia num tipo de condicional das sombras, enquanto prestasse serviço em causas dos Arcanjos, em geral, os gatos pretos consistiam em algum espírito humano pouco evoluído, com tendências obsessivas e más, essa foi a criatura que escolheu para vigiá-la. O Gato Preto encontrou uma brecha no apego inocente que a prendia a seu visitante noturno e instalou-se em sua vida. Tinha permissão para atormentar qualquer um que ousasse tentar conquistar a moça. Ela possuía um dono, mas na verdade, era dominada por um dono que não a possuía, fato que incomodava Rafael, pois desejava ser completo para Diná.

E muito o Gato Preto falava a Rafael, conhecia os segredos do ser feminino e torturava o Arcanjo com os desejos que passavam pela cabecinha das jovens. Contou da eternidade e da sensação de poder do último segundo antes dos lábios se tocarem num beijo, do calor nas entranhas e da vontade de ser simplesmente abraçada. “Abraçada, aquecida, beijada”, a garota amaria quem fizesse da maneira correta, seria profundo e então o desejo carnal suplantaria qualquer coisa que Rafael fizesse em seus encontros espirituais.

Porém havia um mito, o incubus, a materialização de um ser de além da matéria para experimentar a conjugação carnal. Rafael, nunca havia feito, embora conhecesse a prática de seus irmãos e anjos. Para tê-la só para ele teria que mostrá-la o quanto a ama, e que poderia oferecer as mesmas coisas que os rapazes e muito mais. O incubus seria a solução, decidiu.  

***

Entrou em seu quarto como sempre fazia e dispensou o Gato Preto. Ainda não planejara o que ou como fazer então postou as mãos sobre o corpo dela, separando-o do espírito, adorava vê-la assim, duplicada, ao mesmo tempo cheirosa entre os lençóis e flutuando a sua frente, olhos nos olhos, confiante de que ele é apenas um sonho bom. Considerou levá-la de volta a seu principado, mas logo descartou a ideia infeliz, o incubus teria que acontecer no território dela, com corpo e espírito presentes. Julgando-se sem opções para aplacar sua cobiça, quebrou a palavra dada e materializou-se. Para agir como homem, precisaria dos estímulos sensoriais de um homem. Tantas vezes esteve deitado naquela cama, no entanto foi uma experiência diferente estar ali e ter uma pele para sentir o toque do mundinho da moça. Sentiu o vento fresco da noite, correu os dedos pelo papel de parede, aconchegou o corpo na cama confortável.  Sobretudo, maravilhou-se com outra perspectiva dela. Tocou seus cabelos e sentiu o cheiro da tinta que teimava usar, a textura das imperfeições na pele e novamente se apaixonou por ela, enquanto o espírito de Diná apenas os observava de cima. E invertendo os papéis, os pelos de Rafael se arrepiaram com a proximidade de um espírito. Diná beijou os lábios de seu próprio corpo adormecido e sorriu movendo-se para perto dele. Seduzido, decidiu que sim, faria o incubus, devolveu o espírito de Diná ao corpo e ela suspirou cansada, esse processo requer enorme gasto de energia e chegou a recorrer ao Gato Preto para que fornecesse um pouco da sua energia para ela. Naquele instante, ficou incomodado com traços de uma criatura vil dentro de alguém inocente, a atitude certa seria usar seu dom de cura para restaurar-lhe a pureza, mas para isso entraria em sintonia direta com a Origem e temia a interrupção divina daquilo que mantinha com Diná. Na situação em que estavam, valia a regra máxima do livre arbítrio: ela poderia neutralizá-lo a qualquer momento, só precisaria dizer não e nunca a teria de volta.

Aninhada em seu peito, a garota jamais pareceria próxima de um não. Pelo contrário, despertou sem estranhar sua presença, talvez julgando continuar sonhando. A esperança de Rafael era ter seu amor correspondido, enquanto ela admirava a perfeição física que só um anjo exibiria. Trouxe o rosto querido para perto do seu e sem saber como beijá-la ficaram apenas respirando com o lábio mais fino dela abaixo das narinas dele e o lábio carnudo entre os seus abertos, ela estava calma e o príncipe ofegante, isso o deixava nervoso. Ao movimentar a língua molhou um pouquinho a boca de Rafael que recuou num choque. A primeira parte daquele corpo a receber seus beijos foram as pequenas mãos em concha, finalmente a agitara e recebeu uma forte mordida no ombro apoiado na cama, sentiu o hálito humano  aquecer as fibras de algodão do lençol e sentou-se fugindo uma segunda vez. Apesar do medo insistente, sabia que não poderia escapar da própria vontade e manteve-se alisando as pernas de bailarina devagar o suficiente para alcançar um estado de serenidade e pensar no que fazer. Era a primeira vez de ambos e se deu conta que a garota nem ao menos se tocava, então ensinou o que as mulheres fazem, ela gostou, deslizou na cama jogando a cabeça para trás. Quando tornou a abrir os olhos tinha um brilho novo no olhar, a partir disso o anjo soube que teriam que ir até o final. Quem tomou a iniciativa do beijo foi ela, num salto de felina, e a sensação para o anjo foi ótima, experimentava um grande momento e voltando a ser suave, ela o abraçou com as pernas e tentou encaixar-se. Uma pontada de cólica a fez parar, então ele segurou sua cintura para que a moça não descesse demais, evitando assim dor excessiva. A natureza humana da moça agiu, fazendo com que ela guiasse os movimentos dos dois, e após um longo suspiro, ela prendeu a respiração alguns segundos e jogou-se sobre a cama. Estava satisfeita. E isso se repetiu toda noite que o Anjo da Morte pôde estar com o corpo de Diná.

***

Enquanto isso, o Gato Preto voltava a um principado feito de fogo, cujo príncipe o havia “emprestado” a Rafael. E a Voz escutou atentamente toda a narrativa daquele espírito.

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