Incubus - Arcanjo Gabriel

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O principado de Gabriel queimava constantemente, construíra-o com as mais ferozes labaredas. A Voz parecia feito de fogo, e era assim chamado porque representava a fala de Deus, o Arcanjo da Anunciação. A tarefa exigia um grande sacrifício, Gabriel sentia a própria voz sufocada na garganta, e essa dualidade o tornou um ser de intenções duvidosas. Por mais que o amassem, seus irmãos desconfiavam se as palavras dele indicavam o que realmente sentia. Mas em seu desespero, foi esse Arcanjo que Rafael procurou, tentando enganar a si mesmo a respeito das consequências dessa escolha. A Voz enviava seus anjos mensageiros em grande parte das tarefas e saía do próprio principado apenas para aparições tão espetaculares que podem ser lidas em todo evangelho encontrado no Universo, acostumara-se a ser tão grandioso que ficou impaciente com filhos de Deus em processo de evolução, exceto com gatos pretos. Essa classe particularmente o interessava, devido à associação entre o estado de espírito que apresentavam e liberdade de livre arbítrio, sempre úteis em tarefas escusas, os recebia em seu principado frequentemente. Não que fosse mau, encontrou nisso uma forma de aliviar aquele incômodo silêncio que enjaulava sua voz.

Concluída a narrativa do Gato Preto, Gabriel continuava curioso a respeito de Rafael e Diná. O que possuía essa humana para deixar seu irmão desnorteado? Teve nojo desse envolvimento, ele próprio realizou incubus inúmeras vezes, com humanos em diversos graus de evolução, jamais repetia um corpo, acreditando que a grande honra de ser amado por um ser angelical caberia ao humano e deveria ser única.  Sequer imaginava como alguém de sua classe poderia cair dessa maneira por um ser que nem recordava a própria criação na Origem. E o outro lado de sua personalidade teve pena da alma de Diná, pois Rafael devia ter esclarecido sobre o direito de escolha antes de cercear as possibilidades da humana. Estando na Terra, tinha total direito a vivenciar o que o Gato Preto evitava, e decidiu que ele, a Voz, libertaria a pequena criatura dessa prisão.

***

Cumprindo o combinado o Gato Preto avisou o Arcanjo da Anunciação que Rafael não visitaria a moça em determinada noite. Por hábito ou vaidade, Gabriel sempre surge materializado diante de humanos e suas chamas iluminaram o quarto a despertando. Ela ficou de pé diante do visitante; avaliaram-se.

Parecia uma garota comum, seu único detalhe perturbador consistia no extenso período de sonolência da alma. Enquanto os outros já haviam vivenciado incontáveis experiências, Diná dormia no principado de pedra. Tornou-se uma alma indefinível se jovem, ou antiga, tão dúbia quanto Gabriel.

O novo homem em seus sonhos diferia em tudo do outro.  O primeiro parecia um selvagem com o lábio superior simiesco, mais comprido que o inferior sobre dentes que lembravam um animal, olhos escuros de fera, contrastando com o restante das feições finas e perfeitas, com cabelos escuros num estilo yuppie da década passada, e muito mais alto que aquele que tinha diante de si. O novo invasor era menos atlético e mais musculoso, a pele não tão branca quanto o outro, tinha um lindo tom dourado que se repetia no cabelo raspado bem rente, boca incrivelmente cheia e olhos de um azul escuro, falsamente inocentes, concluiu. Ela ergueu uma sobrancelha retificando seu pensamento: não havia inocência em ambos, mas uma inteligência mais arguta e maliciosa era perceptível naquele olhar, e sabendo exatamente o roteiro daquelas visitas, tirou a camisola e tornou a se deitar.

Gabriel não é do tipo vacilante e mais morderam-se que beijaram. A voracidade do anjo a fez soltar sons altos de loucura, quando ele a colocou de costas e desceu o rosto por sua nuca, coluna, enterrando o rosto nas partes mais íntimas de sua carne. Sentia o toque de cada milímetro dos lábios de Gabriel, como se o toque dele concentrasse todas as terminações nervosas só para senti-lo. E colaram os corpos de tantas maneiras que o quarto girava acelerado, ela sorriu vendo ele abraçado às suas pernas estendidas ao longo do peito dourado, a boca vermelha saboreando os pés sofridos. Por fim manteve o amante por cima do corpo, perto do auge o quis assim. Disse: “mais doce que o céu, mais quente que o inferno”, Gabriel soluçando conseguiu repetir a frase e teve prazer em falar algo ditado pela moça, foi estranhamente libertador. Exausta, limpou o suor da testa e voltou a dormir.

Derrotado, o Arcanjo pediu ao Gato Preto que lhe avisasse a próxima noite sem passagem do irmão.

***

A luz do dia anunciou a hora de despertar, a primeira coisa que a moça viu foram duas pontas duplas no cabelo, “que legal”, preferia esperar o vencimento da fatura do cartão de crédito, mas aquele cabelo precisava de um corte urgente, talvez desse tempo naquele dia. Antes teria que comprar novas ponteiras de silicone para as sapatilhas, ultimamente dançava calçando uma marca nova indicada pelo Rogério, o vendedor mais popular na academia, mas não aprovara, o impacto dos saltos causaram fortes dores nos pés e as tais ponteiras simplesmente não absorviam nada. Além disso, outro problema a perturbava: era impossível negar algo singular em sua vida, conforme uma amiga observou “tudo para você dá certo, tem uma sorte inacreditável, mas, em namoros, é um desastre completo!” Mal essa amiga sabia que as visitas noturnas espantavam qualquer carência, porém reconheceu, “certamente as coisas vão mal”. Trocou o salão de beleza por uma consulta emergencial no psiquiatra, saiu com uma receita de medicação antiestresse que a ajudaria a dormir, que ironia. Na volta para casa seu companheiro de viagem no ônibus se comportava de modo tão estranho que considerou descer mesmo estando distante do seu bairro. Antecipando a ideia, o colega levantou e apertou o botão de parada, antes de partir estendeu um papel para a garota que aceitou desconfiada. Quando o veículo voltou a acelerar leu o título: “Oração de São Miguel”.

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