Capítulo II

1.5K 146 19
                                    

Já era tarde e o corpo de Guilherme já reclamava por ter de passar a noite no sofá pequeno da sala, que fazia conjunto com a poltrona perto da janela. Era um estofado de apenas dois lugares, nada muito confortável e, para um homem relativamente grande como ele, aquilo parecia o inferno recheado de espuma. Apertou os olhos com os dedos, já se arrependendo daquilo, até que se lembrou do motivo.

Caminhou até o único quarto da cabana. A moça se encontrava sentada sobre a cama de casal. Vestia apenas uma camisa de moletom e mangas compridas do homem, que mais lhe parecia um vestido, chegava até perto dos joelhos grossos, resultado dos castigos que sofrera. As pernas balançavam livres, pois os pés – cobertos por um par de meias brancas, que lhe chegavam até a metade das canelas, muito maiores do que deveriam ser – não tocavam o chão e sua dona estava alheia aos olhos azuis que analisavam cada movimento seu.

Ele havia entregado as roupas a ela para que tomasse banho antes de dormir, logo após o jantar. Explicou como o chuveiro funcionava e deixou que ela se virasse sozinha. No fim das contas, tudo deu certo, embora tivesse notado um quê de surpresa no rosto da jovem, quando ele foi tão gentil ao encher a banheira e o sorriso que esticou os lábios grossos e escuros, quando ele informou sobre a água quente.

Com passos calculados ele se aproximou. Ela viu os pés cobertos pelas meias pretas, subiu o olhar pelas pernas longas e não tão finas dentro das calças de moletom cinza, passou pelo tronco coberto por uma camisa branca, até encontrar suas lagoas. Os cabelos escuros estavam bagunçados e as pontas do nariz e das orelhas avermelhados de um jeito adorável. Ele nunca parecera tão inofensivo quanto naquele momento.

— Você precisa de alguma coisa? — perguntou ele — Está tudo bom para você?

A mulher abaixou a cabeça. Mais uma pergunta que ela não tinha certeza de como responder. Tudo ali parecia perfeito. A cama era macia, o travesseiro confortável, os cobertores quentes. Desde que se lembrava nunca tivera a oportunidade de uma noite que lhe parecesse tão confortável. Ainda assim, o medo estava presente. Nunca gostou de dormir sozinha e tinha medo do escuro, era quando o monstro aparecia e se estivesse sozinha... Não era nada bom.

Sem respostas, o homem grande apenas suspirou e voltou a falar, não antes de chamar a atenção da negra para si.

— Eu vou estar na sala. Se precisar de alguma coisa, pode me chamar.

Estava virando de costas, deu o primeiro passo em direção à porta, porém foi parado por uma mão em seu braço. A mão pequena e um tanto grossa segurou seu braço com firmeza. Estava fria e deixaria uma marca vermelha na pele branca dele. Os dedos curtos recuaram, assim que ele voltou sua atenção para ela. A cabeça voltou a abaixar, deixando-o confuso.

Por minutos ele esperou que ela explicasse o que tinha acontecido, mas a vergonha parecia pesar no crânio da mulher. Ela não conseguia encará-lo para dizer o que lhe afligia, assim como não podia deixá-lo se afastar, deixando-a a mercê dos perigos que a noite poderia trazer. Também não tinha muitas opções de como se explicar. Não podia falar. O que faria?

Vendo que se não agisse ficariam ali durante toda a noite, Guilherme deu um passo à frente e agachou diante dela. As sobrancelhas dela se ergueram, assim como os olhos que aumentaram de tamanho. Céus! O que aquele homem estava fazendo?! O medo era grande, contudo, quando os olhos jabuticaba encontraram as esferas azuis... Tudo pareceu sumir por alguns segundos. Ela não podia sentir aquilo. Não por um homem. Não àquela hora da noite.

— Quer me dizer algo? — os joelhos contra o chão começavam a receber a friagem.

Ela voltou a pensar. Queria fugir do perigo. Se ele a deixasse, o perigo chegaria, mas... E se ele ficasse? E se ele fosse o perigo? E se também quisesse machucá-la. Não tinha para onde correr, então fez o que lhe pareceu mais sensato - ou o que seu coração disse. Assentiu.

Escute o Meu Coração (DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora