Ele sabe

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  O capitão precisava da ajuda do Major, este que não estava no quartel, então Randolfo teve de procurá-lo no único lugar onde ele poderia estar se não no quartel.

A oficina mecânica.

Já faziam dois anos que Otávio ensinava esgrima para Luccino, por isso ele passava horas fora do quartel. Era estranho, pois era certo que esgrima exigia tempo de treino, mas dois anos eram muito, assim achava Randolfo.

  Já no portão da oficina, ele ouvia vozes vindas de dentro dela, mas onde estava o timbre metálico dos floretes? Randolfo entrou silenciosamente, e pareceu não ser notado por Luccino nem por Otávio. Estes dois que formavam a cena mais curiosa que Randolfo já vira entre dois rapazes.

Os dois estavam sentados dentro de um carro, muito próximos, a mão de Otávio na nuca de Luccino, que em resposta acariciava os cabelos do militar. Luccino estava de costas para Randolfo, então não o viu, mas Otávio também não percebeu, pois estava compenetrado no olhar que ele e Luccino direcionavam um ao outro. Os rostos se aproximavam com calma, não havia pressa naquele momento.

  Um beijo quieto e saboroso, doce como a névoa que os embaçava, os lábios deslizavam ritmados, o mesmo gosto, os mesmos movimentos. Nenhum dos dois cansaria de sentir a mesma sensação, contanto que ela fosse boa. Ao afastar os lábios, um sorriso doce pousava abaixo dos bigodes de Otávio, aquele era um momento igual ao de todos os outros dias, uma rotina da qual ele não se cansava, era algo bom demais para ser estragado.

   Infelizmente, nenhum momento era bom demais para ser impossível dar errado, e naquele não foi diferente. Otávio notou um borrão azul e vermelho atrás de Luccino, e ao focar aquela direção, a conexão com Luccino se quebrou, o sorriso doce desapareceu e o pânico o possuiu.

Otávio sentiu a boca seca, a cabeça girar e um suor frio descer por ele. Luccino viu a notória e veloz mudança no rosto do militar, e virou-se para onde Otávio olhava.

Randolfo estava lá, parado, os olhos arregalados, mas sem uma reação certa no rosto, a boca se abria tentando formar palavras, mas o que se dizia quando se via o seu amigo, colega de farda e superior beijando outro homem?

   Desistindo de dizer alguma coisa, ele saiu correndo da oficina, sem saber realmente aonde ir e o que fazer, mas precisava refletir sobre o que havia visto.

Do lado de dentro da oficina, Otávio pulou do carro rapidamente, um tanto desajeitado, que o fez se desequilibrar e cair. Luccino se apressou em sair do carro e ajudá-lo a levantar.

— O que eu vou fazer, Luccino ? Randolfo viu tudo! — Ele disse, o pânico instaurado em seu semblante, há pouco tão sereno. — Ele pode contar pra alguém ou pior, me denunciar.

— Calma,meu bem. — Luccino colocou as mãos no rosto de seu amado. — Você só precisa procurá- lo e...

— E o quê, Luccino?! O que eu vou dizer ? Não sei nem se consigo olhar pra ele. — Sua voz era amedrontada, como se alguém o fosse atirar de um precipício.

— Ora, é claro que consegue! O capitão é seu amigo, vocês vão se entender. — Luccino tomou uma voz decidida. — Agora você precisa procurar por Randolfo antes que algo ruim aconteça. — Otávio assentiu e olhou para a porta.

— Vai, Otávio! Está brincando de estátua ? — Luccino puxou Otávio até a porta, pois ele ainda parecia imóvel.

— Está bem, eu vou. — Otávio andou alguns passos, mas parou e voltou, dando um selinho em Luccino antes de ir. Este que ficou apenas com um sorriso bobo no rosto.

O major correu apressado, procurando por sinais de Randolfo, mas nunca o achava, procurou na casa Benedito, na casa de chá ( e por sorte ele não estava lá) e no quartel, onde ele conversava com um grupo de soldados.

  Otávio sentiu o ar faltar ao ver o capitão conversando com outros soldados. Segurou-se no portão antes de se aprumar e assumir uma posição respeitável diante do quartel, caminhou até o grupo, os olhos ardendo, a visão ficando turva e o ar ficando escasso.  Antes de se aproximar completamente, o grupo de soldados se dissipou, ficando apenas Randolfo, Otávio respirou fundo e tomou coragem.

— Capitão, podemos falar ? — Randolfo se virou para ele, engoliu em seco e assentiu.

Os dois foram para o escritório de Brandão, onde ele não estava, as portas foram fechadas e Otávio se sentou em frente a Randolfo.

— O que você viu, na oficina, não tem nenhuma explicação se não a verdade. — Otávio mexeu as mãos nervosamente.

— Vocês se gostam. — Não era uma pergunta, era uma afirmação. Sem tom, apenas a voz de Randolfo.

— Não vou pedir que aceite nem que finja que não viu, apenas que não me denuncie nem diga a ninguém, isso prejudicaria tanto a minha vida como a Luccino, e eu não quero que ele sofra. — Havia uma verdadeira preocupação nas palavras de Otávio, que deixaram Randolfo um pouco indignado.

— N-não iria denunciar mesmo se não me p-pe-pedisse, amigos não f-f-fazem isso. — Randolfo olhou nos olhos de Otávio.

— Não precisa continuar sendo meu amigo se não quiser.  — Otávio suspirou.

— Ora, e p-p-or que eu não iria querer ? Está ce-certo que... Você e o Lu-lu-luccino são diferentes...mas eu vi seu olhar, m-meu amigo, você estava f-f-feliz, e-e é isso que co-conta. — Randolfo sorriu de modo acolhedor.

— Você está falando sério, Randolfo ? — Otávio ia aumentando um sorriso, mas os olhos ainda pareciam incrédulos. — Mesmo que Luccino seja...um homem ?

— O q-que importa é s-se você está feliz, Tatá. — Randolfo colocou a mão no ombro do amigo. — Mas e-estou c-curioso, desde quando v-v-você e Luccino estão j-juntos ? — Otávio contraiu os lábios.

— Fazem uns dois anos. — Randolfo arregalou os olhos.

— E v-você escondeu i-isso de mim es-sse tempo to-todo ? E-eu sei q-que não é-é a coisa mais fá-fácil  de se falar, mas eu m-merecia sa-sa-saber.

— Eu sei, Randolfo. Mas eu fiquei com medo de você não entender, de me deixar sozinho e perder o único amigo nesse quartel. — Otávio jogou as palavras pra fora.

— M-mas não vai perder, e-eu prometo t-tentar entender. P-posso fazer u-u-umas p-perguntas ? — Randolfo sorriu, os olhos brilhando em curiosidade.

— Pode, é claro.

— V-vocês já estavam j-juntos quando eu c-c-contei sobre o so-sonho ? P-por isso v-você ficou tão al-alterado ?  — Randolfo sorria enquanto falava, assistindo Otávio ficar vermelho e rir também.

— Não, não foi nada disso. Mas aquele sonho trouxe uma proximidade com Luccino, que eu só tenho a agradecer.

— A-agora q-que você está me d-d-dizendo, e-eu deveria ter c-colocado v-v-vocês dois para dançar n-no meu c-casamento. — Randolfo riu, e Otávio riu junto.

— Imagine, eu e Luccino dançando na festa, seria um escândalo.

— M-mas é amor, não é, Tatá ? — Randolfo olhou no fundo de seus olhos.

— É sim...

Otávio voltou para sua casa, onde Luccino o esperava, enquanto colocava a comida na mesa, o rosto apreensivo ao ver o militar entrando na casa.

— Então, como foi com Randolfo ? — Ele se sentou, Otávio contraiu os lábios e sentou também.

— Ele nos deseja felicidade. — Otávio sorriu enquanto começou a servir o próprio prato.

— Mesmo ? Ele não ficou com raiva ou nojo ? — Luccino disse, surpreso mas feliz.

— Só um pouco decepcionado, mas era porque eu nunca havia dito nada a ele. — Disse com suavidade.

— Mas isso não é exatamente a coisa mais fácil de se dizer a alguém. — Luccino disse, sorrindo. Otávio retribuiu o sorriso. — Mas tudo ficou bem, não ficou ?

— Eu acho que sim...— Otávio suspirou, aliviado.











Ah, não. Você não achou que tinha acabado, né ?

 Eu estava certoOnde histórias criam vida. Descubra agora