Capítulo 2

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Capítulo 2

    O dia estava quase amanhecendo quando Mary Ann Wilde chegou na emergência do hospital. Seus cabelos loiros pareciam sujos na trança mal feita, as calças por baixo do casaco eram de pijama, mas sua expressão era determinada.
    - Boa noite - disse ela à enfermeira de meia idade que estava na recepção. - Eu preciso de ajuda. Tem algo errado com o meu bebê.
    - Onde está o seu bebê? - Ao ver a garota sozinha, a enfermeira pensou que talvez ela fosse uma daquelas mulheres que têm filhos imaginários. Já acontecera muitas vezes.
    Mary Ann abriu o casaco. Por baixo das roupas folgadas, seu avançado estágio de gravidez era evidente. Mais importante, no meio de suas calças encontrava-se uma enorme mancha vermelha. A enfermeira chamou pelos médicos de plantão, ao mesmo tempo em que preenchia o formulário de admissão.
    - Quantos anos você tem?
    - Dezenove.
    - Está sozinha?
    - Sim. - Mary Ann desafiou a enfermeira a sentir pena.
    Nesse momento, os médicos chegaram para buscá-la. Após um exame, foi decidido que o melhor a fazer era induzir o parto, mesmo que ainda faltassem duas semanas para os nove meses de gestação. As horas demoraram a passar. No quarto, uma procissão de médicos e enfermeiras davam diversas ordens a Mary Ann, mas a dor era tanta que ela mal conseguia compreender o que diziam. Finalmente, quando achava que não teria mais forças, um choro abafado indicou que o pior já tinha passado.
    - É uma menina - o médico sorriu para ela por trás da máscara.
    Alguns minutos depois, um embrulho de tecido foi entregue nas suas mãos. Mary Ann olhou para ele e viu delicados olhos terrivelmente familiares, as íris chocolate quase invisíveis por trás das pálpebras semicerradas. O cabelo castanho claro era pouco mais que uma penugem. A expressão do bebê era de uma firmeza inesperada para um recém-nascido. A mãe sorriu em aprovação, até que a exaustão lhe fez dormir ali mesmo.
    Mais tarde naquele dia, mãe e filha estavam no quarto quando uma leve batida na porta anunciou um rapaz segurando um vaso de flores. Ele aparentava a mesma idade que Mary Ann, e vestia um suéter e blazer tão simples que só podiam ser muito caros. Seus cabelos negros estavam penteados para trás com várias camadas de gel para que se mantivessem no lugar. No peito, uma etiqueta em que se lia “visitante”.
    - A enfermeira me disse que você estava dormindo.
    - Ricky?
    Mary Ann esqueceu como fechar a boca. Durante todo o tempo em que conhecera Richard Saito, nunca o vira vestir algo que não fosse jeans rasgados, jaqueta de couro e coturnos. Seu cabelo, embora extremamente liso, era cortado de tal forma que jamais aceitaria ser contido como estava agora. Ao vê-lo tão diferente, a garota se sentiu na presença de um desconhecido. Ele apenas sorriu com o canto da boca.
    - Minha família tem conexões, Annie. Você não poderia se esconder em San Diego sem eu descobrir.
    - E o que você quer? Criar a própria filha já deixou claro que não é.
    Os olhos de Richard, idênticos aos do bebê, suavizaram, e ele olhou para baixo por alguns segundos antes de responder:
    - Você não entende. Meus pais são japoneses, tradicionais, eles não iam aceitar uma criança fora do casamento, ainda mais com uma garota branca.
    - E você claramente resolveu que é hora de começar a agir de acordo com o que eles querem. - Mary Ann indicou com a cabeça as roupas que ele estava usando. Richard suspirou.
    - Minha família não é como as outras, Ann. Eu não entendia isso. Mas as circunstâncias mudaram, e eu tenho que assumir responsabilidades que não esperava - Ele depositou o vaso de flores na mesa de cabeceira de Mary Ann. Preso a ele estava um cartão. - É para você.
    Mary Ann se inclinou e apanhou o envelope. Em contraste com o pesado papel branco, uma caligrafia fina e delicada escrevia:
    “Querida Annie,
    Eu gostaria que as coisas tivessem sido diferentes.
Amor, Richard.”
- Amor? - Mary Ann apertou os olhos e torceu o nariz. - Você não foi capaz de amar nem sua própria filha, quanto mais a mim.
Nesse momento, Richard percebeu finalmente o pequeno embrulho no berço ao lado. Ele dirigiu-se até lá como que hipnotizado, e apanhou o bebê de forma ligeiramente desajeitada.
- Ela é realmente minha filha - sussurrou.
- Claro que é. Você achava que eu estava inventando?
- Não foi o que eu quis dizer, esqueça. - Mary Ann nada respondeu. Para seguir a conversa, perguntou: - Você já escolheu um nome?
- Ela vai se chamar Jennifer, como a minha avó. Jennifer Wilde.
- Pensei que você ia pedir para chamá-la de Jennifer Saito.
- Se ela não precisa da sua presença, também não precisa do seu nome. Ou de qualquer outra coisa sua.
- Eu não tenho intenção de deixar vocês desamparadas, Annie. Não precisa se preocupar com dinheiro.
- Agora quer mostrar que se importa? Eu passei a gravidez inteira sozinha desde que meu pai me expulsou de casa, e você nunca procurou saber de mim. Sabe o que eu acho? Que pra você era brincadeira pagar de rebelde, ser o pobre menino rico, mas assim que a coisa apertou voltou correndo pras saias da mãe. Está insatisfeito porque sua festa acabou e eu não estou mais lá pra lhe consolar. Pobre Richard! - Ela deu uma risada rouca, e o bebê chorou por causa do barulho. Richard balançou ligeiramente Jennifer para que ela se acalmasse.
- Você jamais vai compreender minhas ações, Mary Ann, ou os motivos por trás delas. Mas saiba que, apesar de tudo, eu vou sempre estar por perto quando vocês precisarem. - Ele beijou a testa do bebê e o devolveu ao berço, virando-se para a mãe. - Eu não seria um bom marido para você, e seria um pai pior ainda para ela. Prefiro acreditar que você me perdoaria pelo que vou  fazer.
Richard se aproximou da cama de Mary Ann, encarando-a profundamente. Medo arrepiou os pelos da garota. Ele apanhou o vaso e o cartão da mesa de cabeceira.
    - O que você vai fazer comigo, Richard?
    - O que eu preciso, por mais terrível que seja. - ele afagou seus cabelos com a mão livre. Era perceptível a mudança em seu tom quando falou: - Você não sabe quem eu sou. Também não sabe quem é o pai da criança, foi só alguém que conheceu numa festa e nunca mais viu. As duas estão melhores sem ele. Você vai se esforçar ao máximo para ser a melhor mãe que puder, e vai ser muito feliz. - A última parte, ele sabia, era mais desejo do que ordem, porque não havia como controlar o futuro.
    Por um segundo, os olhos de Mary Ann expressaram profunda tristeza, como se ela soubesse o que estava acontecendo. Em seguida, assumiram a habitual falta de foco das mentes compelidas. Por fim, ela o encarou com ar de confusão. Um estranho bonito estava em seu quarto, com um vaso de flores nas mãos.
    - Quem é você?
    O estranho sorriu educadamente.
    - Desculpe, quarto errado - ele se virou e fechou a porta ao sair.
Quando finalmente deixou o hospital, Mary Ann se viu perdida pela primeira vez desde que descobrira que estava grávida. Os últimos meses tinham sido gastos em preparação para a chegada do bebê. Agora que Jennifer estava em seus braços, ela tinha ao mesmo tempo todos os cantos do mundo e lugar nenhum para onde ir. A amiga que lhe cedera o sofá na gravidez deixara claro que a cortesia não seria mantida após o parto.
Na esquina, um telefone público estava desocupado. Ela tirou o fone do gancho, colocou as moedas e discou um número muito conhecido.
    - Alô? - Atendeu uma voz feminina.
    - Mãe, sou eu.
A mulher no telefone nada disse, apenas começou a chorar. Contra sua vontade, os olhos de Mary Ann também encheram d’água. Subitamente, o choro foi interrompido por uma agressiva voz masculina:
    - O que você quer?
    - O bebê nasceu. É uma menina. Jennifer.
    - Ainda tem a ousadia de usar o nome da minha mãe? Espero que ela não vire uma vagabunda como você.
Um estalido indicou que ele bateu o telefone na sua cara. Mary Ann pôs o aparelho no gancho e olhou para o rosto do bebê, que dormia profundamente. Ao contrário do pretendido por ele, as palavras do pai serviram para dar novo ânimo à garota.
    - Somos só eu e você, Jenny - ela diz para o bebê. - Mas sabe o quê? Nós não precisamos de mais ninguém.
Mary Ann foi até a casa da amiga, apanhou suas roupas e seu violão, e algumas horas depois estava num ônibus em direção a Los Angeles.
Os meses seguintes foram extremamente difíceis. Mary Ann aceitou qualquer trabalho em que pudesse manter a filha numa cestinha ao seu lado. Nas folgas, ia para a rua com seu violão para ganhar dinheiro extra. Quando demorava a conseguir um novo trabalho, ia para a próxima cidade em busca de novas oportunidades. Desta forma, atravessaram toda a costa da Califórnia.
No aniversário de dois anos de Jennifer, elas já estavam em São Francisco havia três meses. A cidade parecia trazer boa sorte para Mary Ann. Os transeuntes que a viam se apresentar eram muito mais generosos do que nas outras cidades, ainda que um pouco estranhos. Com frequência, ao invés de dinheiro, eles entregavam comidas e brinquedos a Jennifer. Uma vez um homem tentou dar um canivete prateado à menina, e pareceu confuso quando Mary Ann falou que isso não era um presente apropriado para um bebê.
Naquela tarde, ela estava em um parque sentada em uma toalha estendida na grama, observando a filha se lambuzar com o enorme sorvete de chocolate que comprara como presente de aniversário. Um homem alto e magro de cabelos grisalhos se aproximou dela com uma linda menina ruiva, pouco mais velha que Jenny.
    - Com licença - disse ele numa voz agradável. - Eu não sei por que, mas Vivian aqui insiste que precisa dar de presente a boneca favorita dela para sua filha.
Mary Ann reconheceu a boneca. Estava sempre sendo anunciada na televisão, e os olhos de Jenny se arregalavam toda vez que a viam, mas era extremamente cara. Ela estava juntando dinheiro para que talvez pudesse ser um presente de Natal, mas parecia improvável que tivesse o bastante até lá.
    - Obrigada, mas não é necessário - respondeu, mas já era tarde. Jennifer estendeu os braços para a menina, que entregou a boneca prontamente e assumiu uma expressão confusa.
O homem e a menina foram embora de mãos dadas, e apesar de ter achado a situação estranha Mary Ann não tornou a pensar nele até um mês depois. Ela estava se apresentando na calçada  de uma enorme loja de departamentos quando ele apareceu na sua frente e perguntou se podiam conversar. A curiosidade ganhou a batalha contra a desconfiança e ela concordou. Os dois se dirigiram a um café nas proximidades.
    - Eu não me apresentei naquele dia. Meu nome é Victor Selleck. Sua filha gostou da boneca?
    - Mary Ann Wilde - eles apertaram as mãos. - Ela adorou, não a largou desde então.
    - Eu não sei porque as crianças adoram tanto aquela boneca. Assim que nós saímos do parque minha filha me fez comprar outra. A generosidade infantil não parece durar muito. - Ele riu.
    - Verdade. Mas com Jenny sempre foi assim. As pessoas sempre dão a ela o que ela quer, mesmo quando não deveriam.
    - É mesmo? Curioso. - Ele não elaborou. - Mary Ann, eu sei que deve estar se perguntando por que eu pedi para conversar com você. Não vou fazer rodeios. Eu sou dono de uma empresa sediada em Portland. Nós fazemos pesquisas revolucionárias em várias áreas de ciência e tecnologia. Atualmente, nós temos uma vaga aberta para secretária. Gostaria de saber se você está interessada.
    - O dono de uma empresa vir de Portland até aqui para contratar uma secretária sem experiência? - Perguntou ela incrédula. - Por quê?
    - Eu vim até aqui a negócios. Falar com você é apenas um pit stop. - Ele sorriu para ela de forma tranquilizante. - Se quer saber a verdade, Mary Ann, não estou oferecendo a oportunidade por sua causa, embora tenha certeza que você é capaz de realizar um bom trabalho. A razão pela qual eu estou aqui é que os filhos dos meus funcionários têm acesso gratuito ao ensino mais qualificado que alguém poderia receber. Inclusive os filhos das secretárias. - Ele se inclinou para a frente e encarou Mary Ann com intensidade. - A sua filha é uma menina muito especial. Eu quero ajudá-la a dar para ela tudo que não pode atualmente. Estou apenas supondo, claro, mas me parece que você não tem família nem nada a perder aqui. Por que não fazer o melhor para a sua filha?
    - Se não foi por mim, tudo bem, mas por que ela? Eu acho Jenny maravilhosa, mas ela não é diferente de nenhuma outra criança.
    - Sua filha inspira as pessoas, você mesma disse isso. Não é só minha filha que sabe ser generosa. E a minha generosidade é muito menos efêmera.
Ele pegou algumas notas da carteira para pagar a conta e se levantou. Para Mary Ann, entregou um cartão que dizia apenas:
Instituto Volga de Avanços Científicos
Victor Selleck
Fundador e CEO
Embaixo, um número de telefone e um endereço em Portland.
    - Espero que pense na minha proposta. Nós dois queremos a mesma coisa, o que é melhor para Jennifer.
À noite, Mary Ann apanhou Jennifer na casa de uma vizinha e a depositou no chão do seu pequeno apartamento. Contou os acontecimentos à filha, mesmo que ela não compreendesse.
    - Quando você nasceu, eu prometi a mim mesma que seria a melhor mãe que eu pudesse ser. Ele lhe ofereceu uma oportunidade que eu jamais seria capaz de dar. Eu não posso ser egoísta, não é mesmo?
Ir embora significaria uma mudança para um mundo novo. Abandonar o sol da Califórnia, abandonar a vida errante que tivera até então e a liberdade que vinha com ela.  Abandonar o sonho artístico. Por outro lado, ela entendia que crianças precisavam de estabilidade, e aquela oportunidade não bateria na sua porta duas vezes.
    - Adivinha só, neném? Nós vamos para Portland.

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⏰ Última atualização: Jan 29, 2019 ⏰

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