Tudo começou depois que um cômodo da casa foi interditado.
Dona Jussara estava limpando o banheiro do corredor principal, aquele que era o mais usado da casa. Deixou o lugar coberto de água sanitária enquanto foi ao mercado. Pamela, a filha, acordou e, sem opção, teve de utilizar outro. Foi até o quarto de visitas que, apesar de pequeno, tinha um banheiro acoplado. Abriu a porta, conferiu se tinha papel higiênico – já que há semanas não entrava ali – e sentou-se no trono.
Foi então que Pamela a viu.
Uma aranha. Mas não uma aranha como aquelas que a mãe encontrava em lugares esquecidos na hora de fazer faxina. Não era uma daquelas pequenininhas, que ficavam entre as baratas. Era uma aranha grande, bem grande. Ela saiu correndo e gritando pela mãe. Tinha catorze anos, mas nos três minutos seguintes qualquer um diria que ela tinha oito.
A mãe ainda não tinha retornado. Então ela voltou ao banheiro, temerosa, passo a passo. Lá estava ela. Na base do vaso sanitário, bem perto de onde um usuário deixaria despreocupadamente os pés enquanto se aliviava. Quieta, silenciosa, peluda, cheia de garras e pronta para atacar.
Pamela olhou para o chinelo que calçava. Deveria matá-la? Tinha trocentas patas. Certamente era venenosa. Lembrou-se de que havia algumas aranhas venenosas e, outras, não. Poderia ser ou não ser, eis a questão. Ela não sabia, e não queria descobrir. Era melhor matar para garantir.
Mas matar como? Ela pensou sobre o assunto. Um chinelo poderia não ser suficiente. A maldita aranha poderia espirrar veneno ou algo do tipo, que alcançaria a menina antes de ela ter tempo de se afastar. Má ideia. Talvez um veneno para rato. Ela não sabia onde tinha. Melhor esperar a mãe. Trancou o aposento novamente e deixou a aranha em paz.
A mãe chegou e Pamela correu para contar sobre o acontecido. Disse que a aranha era gigante, que ela nunca vira coisa igual. Que era do tamanho da palma da sua mão aberta, ainda que fosse apenas um pouco maior que seu polegar. A mãe pegou uma vassoura e correu até o recinto, determinada. Apavorou-se.
— Jesus, é mesmo grande!
— Eu disse.
— E agora?
— Vamos matar.
— Matar?
— Claro! Vai querer criar? – perguntou a menina, assustada.
— Matar não! É a natureza!
E Dona Jussara não quis matar. Disse que ela era um bichinho criado por Deus e que ajudava a comer mosquitos. Não podiam acabar com ela. O certo era jogá-la em um mato bem longe de casa. Mesmo assim, ela não teve coragem de fazê-lo. Fechou o banheiro e esperou o marido.
Quando Seu Inácio chegou do trabalho, mal teve tempo de atravessar o portão e deixar a maleta do escritório. Logo o carregaram até o bicho. Mostraram a aranha, mas ele não ficou tão espantado.
— Já vi coisa maior quando servi no exército.
— Mas não aqui em casa! – disse Pamela.
Seu Inácio não concordou com Dona Jussara. A aranha poderia até ser criatura de Deus e comer mosquitos, mas se não a matassem, ela acabaria por matá-los. Certeza que era peçonhenta.
— Será que se aparecer uma onça aqui em casa, você não vai querer que eu acabe com ela, mulher? – disse o marido, argumentando muito bem.
Entretanto, como em todo casamento duradouro, a palavra final era da mulher. Dona Jussara convenceu o marido a não matar a aranha, mas ele se recusou a jogá-la no mato. A rua era repleta de casas e a aranha certamente iria parar em algum vizinho. Ele não jogaria o problema para debaixo do tapete. E se um vizinho aparecesse morto por uma picada, como ficaria sua consciência? A responsabilidade não seria de Seu Inácio, de jeito nenhum.
Dona Jussara, teimosa como era, deixou a aranha trancada no banheiro. Pediria ao seu irmão que a retirasse, assim que ele aparecesse para uma visita.
Quatro dias se passaram. Eles discutiram todo esse tempo o destino da aranha, cada um procurando novos argumentos para convencer o outro. Seu Inácio ainda queria matá-la, Dona Jussara ainda queria salvá-la e Pamela só queria que ela deixasse a casa, não importava como. O caso da aranha virou uma novela, e o último capítulo era imprevisível.
Enquanto isso, Dona Jussara cuidou da aranha. Verificava três vezes por dia se ela estava no banheiro. Uma hora ela estava em algum canto do azulejo, outra hora estava na pia, depois passou para o espelho. Parece que sentiu sede, porque foi vista certa vez perto do ralo do chuveiro. Não importava onde, estava sempre por ali.
Dona Jussara deixava alguma barata que encontrava morta para ela se alimentar, fechava a porta e a janela, deixando o bicho em paz. Uma amiga de Pamela veio fazer trabalho de escola e ela cogitou convidá-la para dormir ali. Não pode. Havia uma aranha hospedada no banheiro das visitas.
Até que Pedro, o irmão da Dona Jussara, finalmente apareceu para uma visita. A mulher não perdeu tempo e correu para apresentá-lo à aranha domesticada. Quando abriram a porta do banheiro, entretanto, ela não estava mais lá. Sumiu.
Procuraram por todo o banheiro. Dentro do vaso, embaixo da pia, em cima do espelho, no canto dos armários, dentro do ralo. Nada. O banheiro estava totalmente fechado, mas ela não estava mais lá. Seu Inácio jurou que não tocou nela. Um clima de aflição tomou conta da casa.
Chamaram a empresa dedetizadora. Por um dia inteiro ficaram fora enquanto os funcionários cuidavam da casa. Encontraram algumas baratas, um rato, muitas formigas e mosquitos, mas nada da aranha. Se não encontraram uma aranha, é porque, certamente, não havia uma lá, eles alegaram.
Dona Jussara não ficou conformada. Preocupou-se.
O bicho ainda deveria estar lá. Talvez tivesse ido ao corredor, entrado em qualquer quarto. Subiria em sua cama enquanto ela estivesse dormindo. Aproveitaria a noite para encontrar uma perna ou um pescoço distraído. Certamente estaria escondida, à espreita, esperando a poeira baixar e ser esquecida por todos.
A aranha estava em algum lugar daquela casa, e algo precisava ser feito.
Passaram alguns dias na casa de Pedro. Depois, alugaram um apartamento e colocaram a casa à venda. Obviamente não contaram nada aos interessados.
Sempre ficavam de olho nos cantos enquanto mostravam a casa a um possível comprador, principalmente quando entravam no banheiro do quarto de visitas. O corredor de imóveis percebia os olhares distraídos que circulavam pela casa, mas não comentava nada.
Venderam-na rápido, até porque não suportavam ficar lá por muito tempo, e os clientes estavam começando a desconfiar.
A aranha nunca foi encontrada. Tornou-se um mito.
FIM
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As Mentiras que os Honestos Contam
Historia Corta"As Mentiras que os Honestos Contam" é o primeiro projeto de contos de Lodir Negrini, após os romances "É pra Glorificar de Pé!" e "Do Jeito que o Diabo Gosta". Trata-se de uma compilação de textos inéditos, repletos de humor, sobre as mais diversa...