O rio

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Ao mesmo tempo que o momento parecia infindável, tinha-se a certeza de que a qualquer instante chegaria o fim. As ondas corriam cada vez mais rápido e o rio elevava-se, podia-se afirmar , até o alto da serra. Nada subsistia a força truculenta das águas. Cecília mal podia suportar mais toda aquela situação, mas quem poderia? Acabará de perder toda sua família em terrível combate. Seu pai, que poderia ter se salvado e garantido ao menos um alento para toda a dor que as consequências da perda iminente daquela batalha trariam-na, preferiu manter sua dignidade e morrer, como um capitão que naufraga com seu navio. Bom capitão é o que o faz, mas será que em semelhante contexto foi a escolha mais sensata? Quem sabe que poderia fazer se estivesse com ela naquele momento? Quem sabe pudesse prever que o rio subiria sobremaneira, sendo o homem conhecedor da ciência que era? Sabia que, mesmo que a tivesse a acompanhado, jamais poderia ajudar. Quem mais sabia sobre a natureza estava ali, ao seu lado, equilibrando, com grande habilidade, o tronco em que estavam para que não virasse e deixasse que eles fluissem sem rumo junto com a correnteza. Peri, a essa altura, já se mostrava cansado. Após lutar e livra-la de um sequestro e, pouco depois, da morte, há poucas horas, ainda havia feito a proeza de levar ambos, ele e ela, para o topo do coqueiro quando a água ainda estava subindo devagar. Agora procurava de alguma maneira uma forma de escaparem do perigo, de protege-la.  Mas não tinha o que se fazer, tudo estava submerso. Ao longe, podia-se ver a serra, intacta, porém seria loucura tentar chegar até ela, até mesmo para ele. Ela pôde reparar a expressão de frustração e tristeza no rosto do jovem índio. Ele não poderia fazer mais nada além do que já fazia para salva-la. Mesmo brava com a situação, sentiu pena dele.
Tudo que podiam fazer era esperar.

Algumas horas se passaram, não se sabe quantas, ao exato. O céu, ainda escurecido pelas nuvens de chuva, começava a limpar. A tempestade, que já tinha se abrandado, por fim cessou. As águas, pouco a pouco, foram descendo. Com pouco tempo Peri o percebera. Vibrou com o vislumbre da possibilidade de salvação. Cecília deitara sobre os braços do nativo. Escondia o rosto, tentando esquecer, não ver mais o que aparentava ser um mar infinito, sem perceber que o nível da água abaixava. Somente quando já se podia ver a copa das árvores, ela levantou-se e viu o que estava passando. Não pode esconder um sorriso genuíno de felicidade e alívio que brotara de seus lábios. A esperança voltou a ocupar-lhe o peito. Nunca o deixara, aliás, porém tinha minguado até o limiar entre sua existência e aniquilação.

— Peri não avisou porque pensou que Cecí estava descansando. —Disse, sem conseguir conter sua felicidade.

— Não faz mal! É até melhor, já que vou ter de esperar menos até que o rio volte ao seu estado original.

— Mas Cecí teria se alegrado antes. — Falou com naturalidade, como se fosse a conclusão mais óbvia do raciocínio. Ela sorriu com isso. Parecia que ele sempre ele sempre punha o seu bem-estar acima do próprio. Se fascinava com aquilo.

— Realmente, Peri. Tens razão.

Cada parte nova dos elementos que compõem a paisagem que conseguiam visualizar era motivo de celebração. Comemoravam, cada um a sua maneira. Peri se limitava a uma expressão quase imperceptível, porém genuína da satisfação. Cecília, ao contrário, faltava saltar no tronco. Em alguns momentos era o que quase acontecia, sendo necessário que o índio redobrasse o esforço em manter ambos em cima da embarcação improvisada. Por fim, a altura da água chegou a um ponto em que já era possível andar por algumas partes.

  — Cecí, já se pode andar. Vamos sair da água e tentar ir andando até a beira da serra, para depois subir. Veja, há uma área em seco ali. 

Havia um caminho seco que ia na direção de uma das extremidades da Serra dos Órgãos. A continuação do caminho ainda estava sob a água, mas já não parecia mais tão fundo.

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