Na mesa

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A calma da madruga se foi, dando lugar a agitação do dia.

Escravas e serviçais foram despertando. Tâmara era uma das primeiras a alçar-se, desadormecendo as outras e comandando o serviço. Alda, sob os chacoalhos de uma das colegas, levantou-se vagarosamente. Tinha tido pouco tempo para o repouso e, por isso, acordara com fraqueza. Frequentemente despertava com os membros dormentes e dores de cabeça.

Pouco a pouco ia recobrando fração de suas forças, dando inicio aos serviços cotidianos. Tâmara voltou-se a ela enquanto escovava rapidamente seus cabelos:

-Alda, vá perguntar a dona sobre o que ela deseja para a refeição de hoje.

Alda acenou com a cabeça. Após pentear os seus cabelos, foi até a cozinha preparar a bandeja com água e flores que a dona Cesária fazia questão de receber pela manhã. A bandeja de madeira foi posta sobre um balcão. Pegou uma pequena jarra de barro, decorada à moda indígena - ao passo que, de forma concomitante, parecia um gomil português - e buscou o vultuoso vaso usado para armazenar água, que não estava no lugar de sempre. Com um suspiro impaciente, olhou pela porta da cozinha que dava para o terreno. Avistou uma mulher com o dito vaso apoiado em sua cintura, abraçado por ela, por seu tamanho e grande peso. Vinha com sua saia amarrada a altura dos tornozelos e seus pés lameados pela terra que alagava com a água que eventualmente caia do jarro cheio. Era Alika.

Alda baixou a face ante sua imagem, evitando a obstinação de seus olhos. Não era razoável se associar com alguém de tanta má fama. O que aprenderia com ela? Sua indocilidade? Ou quem sabe sua indolência e insubordinação? "De que lhe serve isto?", pensava toda vez em que a via entrometida em algum escândalo, em qualquer desavença que criasse. "Negar uma boa vida na casa, e a troco de quê? Sabe-se que isso não a levará a canto algum...", concluía toda vez suas reflexões desta forma. Negava, mas no fundo a invejava por não ter tamanha ousadia de dizer o que pensava, de tentar as coisas que mais desejava, mesmo com a possibilidade do fracasso ser latente.

Ela chegou e depositou o cântaro no lugar de sempre. Apoiou-se no umbral da porta, fechando os olhos procurando recuperar o folego e as forças. Alda, frente a isso, professou:

- Josefina, por que você não trouxe a jarra pela metade e encheu o resto com outra menor? Iria ser menos custos-

Lançando-lhe um olhar raivento, disparou:

- Já pedi pra não me chamar assim. Meu nome é Alika, e tu bem sabes disso.- Retirando-se aborrecida após isto.

-Mas sabes que... - Sua voz morreu ao ver que ela já não mais estava a distância de escutar. -Sabes que dona Cesária, ou o barão não iriam aceitar isto...- Sussurrou. " Ou Misael", pensou.

Encheu a pequena jarra de água, a pôs sobre a bandeja, acompanhada uma cumbuca de madeira, usada para beber. Deixou-os ali para buscar um ramo do pequeno arbusto de flores Sempre-lustrosa vermelhas que ficava ao lado da casa e colocá-lo deitado na bandeja.

Subindo a orla de seu vestido de tafetá, que quase orgulhosamente exibia, andou até lá. O arbusto ficava um pouco antes do depósito onde havia deixado o convidado no dia anterior.

Ia imaginando por acabar encontrando o índio parado na frente do que agora se tornara uma cabana. Contaria sobre o que passara noite passada, sobre aquela mulher querer vê-lo.

Chegando lá, viu Almir setando na relva, de lado pra porta, com a espingarda descansando sobre seu colo. Ele olhou em sua direção, já esperando sua aparição a qualquer momento. Todos sabiam das manias que cultivava a dona da casa.

Um ar gélido percorreu a espinha da moça ao ver seus olhos fitando-a. Se apressou na colheita, retirando o galho de qualquer jeito, depenando as pobres flores, e correu de volta para a casa.

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