Com um facão na mão, a cana era cortada de forma meio desajeitada. Certamente Alika já desempenhava a atividade melhor do que quando a realizou pela primeira vez, alguns meses atrás, mas ainda havia muito a aprender.
O cheiro da fumaça da plantação recém queimada fazia seus olhos e nariz arderem, mas isso já não a incomodava tanto. Sua mente estava fixada na memória de seu porto seguro, seu escape daquele mundo: Martin. Ela deixava uma dessas memórias felizes escaparem por seus lábios, com meigos e saudosos sorrisos que ela tentava refrear com todas as forças quando alguém se aproximava. Revivia a sensação do calor do corpo dele, que a acalentava as noites frias da senzala; dos carfunés aos pés das pitangueiras; das conversas à beira do Paquequer, quando ninguém estava olhando.
Desde que ele se foi, sob a promessa de voltar para buscá-la, já não conseguia pôr a cabeça sobre as mãos cansadas para descansar. À noite, cada som da mata a atiçava, na esperança de que fosse ele. Mas não. Apenas grilos, cachorros, algum capataz. Ele, que já deveria ter voltado, por que não voltou? Será que algo ocorrera no caminho? Alguém o capturara? Ou alguma enfermidade. Sim, elas sempre veem nos momentos mais inoportunos... Não que haja tempo oportuno para tal.
A recordação de seus olhos castanhos escuros, de sua agradável voz ressonante, se misturavam ao sentimento de angústia de não poder estar com ele logo. Mais do que isso: de não poder se entregar ao sentimento de liberdade. Como deve ser? Poder sair sem precisar pedir permissão. Falar o que pensava, se defender sem medo de retaliações. Dormir e acordar quando a aprouvesse. Dançar, cantar alto, sem remorsos.
A aflição era tamanha que até durante o dia ela aguardava um sinal de seu retorno. No horizonte, ver seu rosto, chamando ela pra que corresse até ele.
A fazenda já estava cheia de estranhos vindos da vila. Pessoas de todas as idades e tipos se aglomeravam nos arredores da casa. Ela tinha certa noção do que se passava, mas nada lhe interessava. Por que os assuntos dos patrões importaria? Eles não tinham nada a ver com ela. E certamente eles pensavam que ela não tinham a ver com eles. Nenhum dos que estavam ali, no meio da cana.
De vez em quando, contudo, pensar no que tinha acontecido ali lhe trazia um pouco de comiseração, mas isso era logo afastado. Afinal, eles se importavam com seu sofrimento? Por que ela então deveria ter consideração? De qualquer forma, não faria diferença. Sentir ou não pena não ia mudar nada.
Um grito longe, do lado de fora do canavial, ecoou. Era Misael, os chamando. A faca tinha acabado fincar na cana. Ela revirou os olhos e começou a tentar tirá-la, para ir ver o que ele queria. Alguns cativos iam surgindo do meio das plantas, passando por ela. Uns a ignoravam ou faziam cara feia. Ela retribuia igualmente. Outros sorriam e faziam cumprimentos silenciosos, pra não chamar a atenção. Uma mulher saiu e a sussurrou.
-- Irmã Josephin- ah, digo, irmã Alika! Que será que querem agora, ein?
-- Hum... Deve ser mais do mesmo, algum tipo de reclamação. Sabe como são, nada nunca está bom.
-- Sim... Mas suspeito que tenha a ver com essa daí que chegou. Disseram que o patrão vai fazer um baita dum mortório pros mortos que chegaram aí. Se for o caso, vão querer que nós façamos parte do cortejo fúnebre. Vamos ter uma folga!
-- Hum... É, acho que sim.
-- Vou poder usar o vestido de cetin! -- Disse uma que acabara de sair do meio da plantação.
-- Que dádiva! -- Alika disparou, exaltada.
-- Fale baixo, Alika! -- Sibilou a mulher que chegara primeiro. -- Te ouvirão deste jeito!
-- Ora! -- Ela exclamou mais baixo.
-- Deixe o facão ai, depois você volta pra pegar.
Ela consente e segue atrás, limpando o caldo da cana na saia branca de algodão.
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A Portuguesa
Historical FictionApós horas de aflição e incerteza, as águas perdem sua natureza ímpetuosa e escasseiam-se aos poucos. Ambos sobreviveram ao desastre. Mas agora que não lhes restaram mais ninguém, o que será da vida de Peri e Cecília? *Esta história é uma continuaçã...