Prólogo

426 65 130
                                    

Como disse uma vez o sábio escritor russo Nikolai Leskov, 'não confie em demônios do mesmo jeito que não se deve confiar em pessoas'. Ou sei lá como era a frase. Minha cabeça não anda muito bem.

Escrevo diretamente do velho continente, mais especificamente de Sófia, na Bulgária. Não estou aqui por passeio com o fim de visitar o lar ancestral de meus antepassados ou para provar comidas típicas, mas sim porque recebi uma bolsa de estudos um tanto quanto suspeita para estudar na universidade mais prestigiada no ramo da música de toda a Bulgária - a Национална музикална академия (ou, no idioma de Machado de Assis: Academia Nacional de Música) - o que seria um problema em si só por conta do fato de que eu nunca estudei búlgaro, porém eu sou uma garota com alguns truques na manga.

Além da bolsa de estudos misteriosa de um patrono desconhecido, também fui informada (por um grupo tão chato quanto Testemunhas de Jeová no domingo de manhã) que em algum lugar aqui na Europa existe uma sociedade de pessoas iguais a mim, porém tudo que recebi naquela carta não se passava de uma charada idiota para saber se eu era 'especial' o suficiente. Enfim, acho que eu deveria estar no norte da Espanha e não aqui. Paciência, depois resolvo esse pequeno empecilho.

Mas isso aqui não é lugar para escrever sobre o meu futuro, mas sim sobre o meu passado.

É ridículo pensar que o meu legado para esse mundo será esse diário e ¼ da minha alma.

Não foi uma grande perda, evidentemente, porque minha alma nem vale um pão com ovo da padaria da esquina, ou o equivalente da sua região. Se eu tivesse inventado de vender minha alma para o diabo – ele mesmo, Lúcifer, Rei da Escuridão, Estrela da Manhã, chame do que preferir – e não uma entidade tosca qualquer, eu pelo menos seria rica hoje e não teria que carregar uma cópia do meu contrato por aí, mas não foi bem isso o que aconteceu.

É claro que eu perdi muito mais que minha alma e dignidade. Perdi amigos, e claro, Alistair. Ah, aquele idiota, como sinto sua falta. Entretanto, eu não os culpo pelo que aconteceu, de verdade, se fosse eu naquela situação em que estavam, teria feito a mesma coisa. Eu costumo guardar bastante rancor, deixando-o maturar como um bom vinho, mas dessa vez eu me contive, principalmente por conta da saudade.

De qualquer forma, não dá pra confiar em pessoas, isso é fato, até porque contei para algumas em quem confiava sobre o que realmente aconteceu comigo durante toda aquela confusão e adivinha? Ninguém acreditou em mim. Todos acreditaram na lorota de que eu passei um mês fazendo um mochilão pela América Latina no meio de março. Olha, nem é tão difícil acreditar em portais para um universo paralelo, magia, criaturas sombrias, fundamentalismo religioso e um governo opressor, já que esse é o enredo de basicamente todas as histórias para jovens adultos hoje em dia. Bem, não é todo mundo que consegue ver por trás de feitiços estranhos.

Como ninguém do meu círculo social (círculo não, até porque eu nunca tive muitos amigos, meu 'círculo' está mais para triangulo) acreditou no meu relato, pensei em escrever minhas memórias nesse diário, e ao fazê-lo, talvez eu consiga perceber onde foi que eu errei e o quão estúpida eu fui em acreditar em tudo que acreditei, e, quem sabe, usar o criticismo construtivo para melhorar a minha pessoa.

Assim como resoluções de fim de ano, vou ficar animada em escrever esse troço nos primeiros cinco minutos e usar a reflexão para mudar aspectos ruins da minha pessoa, mas tenho certeza que lá pelo meio da história vou tacar o foda-se e continuar sendo eu mesma. Ridícula, um pouco teimosa e muito ácida.

Chega de lenga-lenga, até porque eu tenho certeza que se alguém está lendo isso é porque meu diário chegou num museu dedicado à objetos amaldiçoados de doentes mentais (afinal, é disso que sou taxada ao afirmar com toda a convicção do meu ser que eu vi com meus próprios olhos míopes uma Nau navegar em um mar de grama ou que fiquei amiga de seres conhecidos como fae que gostam de um picolé de carne humana) e todos nós temos mais coisas que fazer, por exemplo comer pizza e chorar.

Devo começar, então, contando sobre como eu aceitei um objeto mágico no metrô de São Paulo, e isso desencadeou uma corrente de eventos que levou à transferência de ¾ da minha alma a uma entidade desconhecida em troca de uma aventura e porque - francamente - eu achei que seria legal e estava sem nada para fazer.

Você, leitor, deve estar pensando 'nossa que menina burra, quem daria ¾ da alma de propósito?'. Primeiramente a questão não é sobre a minha inteligência, mas sim o fato de que sou péssima em matemática e eu estava em uma fase péssima da minha vida onde a luz do fim do túnel era na verdade um trem, e quem não iria querer viver uma aventura e deixar toda a vida mundana de vestibulanda de medicina para trás? E depois, se eu soubesse que estava realmente perdendo a minha alma e que me restaria menos da metade dela, eu teria vendido tudo, com certeza. Odeio número quebrado.

Mas o que eu ganhei com essa transação? Uma história boa demais para ser verdade, uns objetos mágicos que me ajudaram em alguns momentos na terra de Olarys (também conhecido como 'O Outro Lado'), uma aventura, alguns truques de mágico, um amor impossível e, aparentemente, uma bolsa de estudos na Bulgária? É, foi basicamente isso. Valeu a pena? Não muito. Me arrependi? Claro que não.

Por onde devo começar?? Tantos capítulos legais para começar! Que tal aquela vez que - não, espera. Talvez começar pelo básico? Sabe, exatamente igual a como as pessoas se conhecem na vida real. Bem, meu nome é Anna, gosto de música e odeio coisas demais para listar aqui.

'Mas Anna,' ouço vocês falarem, 'você não faz nada da vida?'. Sim e não. Se você considerar ir para o cursinho de manhã cedo, pegar a Linha 3 vermelha do metrô lotada e voltar só a noite e nem ter vontade de jantar é fazer algo da vida, então eu fazia algo sim. Não que eu levasse muito a sério, já que eu nem estava mais vivendo, estava apenas existindo. Quando você está a três anos tentando entrar em uma faculdade de medicina, fazendo listas de exercício, redações, tendo pressão absurda em casa e os caralhos, você acaba perdendo sua essência (não do jeito que eu perdi, é claro, mas figurativamente é isso que acontece e pode ser tão ruim quanto).

Quem eu estou tentando enganar? Foi horrível. Perder a alma foi melhor do que aquilo, até porque lá eu... não vou contar spoilers porque sei que são horríveis. Spoilers para um diário que só serve para me fazer passar raiva.

Chega de enrolação. Não é porque eu detalharei minha vida e intimidades nesse diário que posso ficar desperdiçando folhas à toa – cadernos e canetas estão extremamente caros hoje em dia... pra ser sincera, o que não está caro hoje em dia? O tio do churros em frente ao meu cursinho aumentou o preço em 3 reais desde que eu comecei lá. Socialismo já.

Olha eu aqui de novo falando (ou melhor, escrevendo) pelos cotovelos. Vamos ao que interessa e ao que trouxe todos aqui: rir da minha desgraça.

Definitivamente não vim aqui ficar me fazendo de coitada, até porque no fim da minha aventura eu consegui uma coisa que fazia muito tempo que não tinha: vontade de viver, de continuar. Engraçado que só consegui isso depois que virei uma (quase) literalmente desalmada.

Fico pensando em como esse pequeno detalhe vai afetar o resto da minha vida. Eu não faço a menor ideia, mas por enquanto, é melhor manter uma certa distância de crianças e animaizinhos fofos.

Bom, toda história precisa de um começo, e esse é o meu. Não foi glamouroso como uma festa de 111 anos do seu tio hobbit ou um funeral de um funcionário público na Rússia czarista, mas foi exatamente como eu: ordinário.

De qualquer forma, vamos começar nossa fábula, onde – spoiler, a moral da história é 'não façam acordos com entidades etéreas'- porém só no próximo capítulo pois o guardanapo de papel aqui do café onde estou está acabando e estou com vergonha de pedir mais. O quê? Eu escrevo a mão mesmo. Ai, estou com cãibra agora. Que merda. 

                                                                                         ~*~

Bom, galera, espero que tenham gostado! Se sim, me digam o que agradou, e também o que não agradou (sempre bom ter criticismo construtivo, né non?) e deixem o votin ai pra ajudar!


Uma Canção Para Os DesalmadosOnde histórias criam vida. Descubra agora