Matilde ajeitou o bebê na dobra do braço esquerdo, e com a mão livre tomou do café de sua caneca.
Estavam ela, Gilberto e a ama de leite numa pensão na região de Taubaté, onde pretendiam se estabelecer. Lá, com o dinheiro de Ivone, comprariam uma casa e Gilberto montaria uma oficina. Matilde procuraria uma família rica que a empregasse. O resto do dinheiro ficaria guardado para emergências. Era uma quantia razoável, mas se fosse usada para as despesas do dia a dia acabaria rapidamente. Com um marido alguns anos mais novo e pouco afeito ao trabalho, ela não podia descuidar.
– Que linda criança! – exclamou uma jovem que servia as mesas do refeitório.
– Obrigada – respondeu Matilde secamente.
– Qual é o nome?
Matilde deu-se conta de que nunca parara para pensar naquilo.
– Que distração nossa! – exclamou Gilberto.
– Não acredito! – espantou-se a jovem. – A pobrezinha ainda não tem nome? Bem, tem de ser um nome cristão, nome de santa...
– Maria Cristina – decretou Matilde, em tom de fim de conversa. Nada poderia ser mais cristão.
Albertina desabou o corpanzil negro sobre uma cadeira, levando a mão ao peito e procurando capturar um pouco do ar que lhe faltava. Já não conseguia passar muito tempo de pé, o que dificultava o exercício de suas funções. Era cozinheira em casa da família Toledo desde muito jovem, preparara mingaus e papinhas para o menino Geraldo, hoje senhor da fazenda Redenção.
Ultimamente, porém, o declínio da saúde frustrava-a cada vez mais. Seus braços gorduchos já não sustinham o peso dos caldeirões e panelas, e o menor esforço roubava-lhe o fôlego, fazendo disparar o coração.
Nesse momento entrou Clarisse Toledo, caminhando devagar em razão do peso da barriga de oito meses. Os olhos de Albertina sempre se iluminavam ao ver sua senhora, uma mulher de vinte e poucos anos, cabelos e olhos castanhos, expressão meiga e serena. Filha de um barão, desafiara a família ao casar-se com Geraldo, um cafeicultor sem títulos ou grande fortuna. A terra era lucrativa e permitia aos Toledo desfrutar de uma vida confortável, mas não luxuosa.
O pai rompera com Clarisse e obrigara toda a família a fazer o mesmo; a mãe, porém, visitara-a às escondidas e levara-lhe algumas joias, “para se lembrar de mim”, explicou, “ou para socorrê-la em tempos difíceis”.
Amada pelo marido, Clarisse encantara os vizinhos e granjeara muitos amigos na sociedade. Dera à luz um menino forte e saudável, um ano após o enlace, e agora, quatro anos e meio depois, estava prestes a ser mãe novamente.
À entrada de sua senhora, Albertina procurou levantar-se, indagando:
– A sinhá precisa de alguma coisa?
– Sente-se, Albertina – pediu Clarisse, e ocupou uma cadeira diante dela. – Está se sentindo bem? – perguntou, ouvindo a robusta mulher arfar.
– Sim, sinhá – mentiu a criada.
– Albertina, por que me falta com a verdade?
Os olhos da cozinheira encheram-se de água.
– Perdão – murmurou. – Eu não queria afligir vosmecê. Estou aqui para servir, não para incomodar com achaques de velha!
– Você parece não me conhecer, Albertina! Sabe que cuido da minha gente. Irei entrevistar agora uma candidata a ajudante de cozinha. Não faço isso para desprestigiá-la, e sim para poupar sua saúde. Entende isso, não?
A criada suspirou, resignada, e aquiesceu:
– Sim, entendo. Sei que não tenho servido a contento.
– Não se trata disso, sua teimosa – disse Clarisse, beijando-a no rosto.
Observando-a sair, Albertina tornou a suspirar, desalentada. Terminara seu reinado.
Ao ver-se diante de Clarisse, a visitante dobrou levemente o joelho e baixou a cabeça, esboçando uma mesura. A jovem à sua frente era uma criatura refinada, da mesma estirpe de Ivone e Henrieta.
– Trouxe carta de recomendação? – indagou a dona da casa.
– Sim – respondeu Matilde, estendendo a carta que recebera das mãos de Ivone.
Clarisse desdobrou o papel e o leu rapidamente. Ao fim, declarou:
– Conheço, de nome, uma família Rodrigues, de São Paulo. Essa senhora Ivone Rodrigues pertence a tal família?
– Precisamente – garantiu Matilde, embora não fizesse a menor ideia. Aquele sobrenome era desconhecido para ela, que não pudera ler a carta por ser analfabeta.
– Aqui diz – prosseguiu Clarisse – que você a serviu como criada de quarto e governanta. Não faz referência a serviços de cozinha. Crê que poderia ser ajudante de minha cozinheira?
– Sim. Não servi como cozinheira da senhora Ivone porque ela já tinha uma, porém garanto que daria uma boa ajudante.
– Você concordaria em ser levada à presença de minha cozinheira, a fim de que ela verifique suas qualificações? Afinal, ela é quem trabalhará com você.
– Como queira, senhora.
– Ótimo.
Albertina estava predisposta a não gostar de sua ajudante, fosse quem fosse, e de fato não simpatizou com Matilde. As lides domésticas e do campo, antes tarefas de negros, aos poucos iam sendo assumidas por brancos pobres, muitos estrangeiros. As coisas estavam mudando, e ela estava velha. Teve de reconhecer, no entanto, que a tal Matilde sabia cozinhar. Mulher da lida, transportava volumes que nem mesmo em seu esplendor físico Albertina teria conseguido erguer. Prática, parecia adivinhar os pensamentos de Albertina, pois se antecipava a suas ordens. Assim, em poucos dias, ambas trabalhavam em harmonia.
O salário era justo, e Matilde estava satisfeita. Trouxera Cristina para residir ali com ela, porém a via muito pouco, deixando-a aos cuidados de outras pessoas. Gilberto ficara sozinho na casa deles – a boa casa que tinham comprado com parte do dinheiro de Ivone –, e ela bem podia imaginar a vida dissoluta que o marido levava longe dela. Ia visitá-lo nos finais de semana, levando Cristina consigo, e encontrava tudo de pernas para o ar.
Ainda assim, bendizia a hora em que, no mercado, ouvira tecerem elogios ao jovem casal Toledo, cujos empregados – uma parte, negros alforriados, outra parte, esta crescente, estrangeiros pobres – não queriam saber de trabalhar em outro lugar.
O bebê de Clarisse nasceu um pouco antes dos nove meses de gestação, mas seu choro estridente revelou que vinha ao mundo em perfeitas condições de saúde. Era um menino, e a mãe o chamou de André. Geraldo, o pai, segurou a criança nos braços com um sorriso encantado e agradeceu à esposa pelo segundo varão que lhe dava.
Eram agora três crianças na casa: os dois meninos Toledo e Cristina, a filha da cozinheira.
"Jardim de Espelhos", de Veridiana Maenaka, é um lançamento da Giz Editorial.
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Jardim de Espelhos - Veridiana Maenaka - Giz Editorial
RomansaRomance brasileiro ambientado em São Paulo na virada do século XIX para o século XX. Lançamento da Giz Editorial: https://www.facebook.com/Gizedit/info