O barulho da chuva estava alto, podia ouvir as gotas caindo nas telhas, o cheiro de terra molhada já subia invadindo as narinas e trazendo uma sensação de paz, a chaleira apitou tirando Flora de seus devaneios, ela caminhou até o fogão e apagou o fogo, pegou a chaleira e sentou-se à mesa.
Era tudo confuso, sua cabeça não absorvia direito as informações daquele longo dia, seus pés latejavam de dor, sua postura sempre ereta estava curvada e sua testa franzida. Era como se a vida dela fosse uma grande mentira, o que de fato era, pelo menos boa parte de sua vida havia sido tirada dela sem seu conhecimento ou consentimento, e agora tinha um buraco dentro de seu peito e perguntas em sua cabeça. Como sua mãe podia ter lhe escondido isso? Uma mentira tão poderosa assim, tão cabeluda e digna de filmes, tão cruel.
Flora era uma mulher simples, com seus vinte e três anos havia terminado recentemente a faculdade de história e começara a dar aulas em uma pequena escola da vizinhança. Seus maiores feitos eram ter sido a primeira da família a entrar em uma federal e abrir os potes de azeitona que sua mãe não conseguia. Ela foi criada pela mãe e pelo avô em uma casa simples com um jardim de margaridas, nada de extraordinário havia acontecido em sua vida, até hoje.
- O chá vai esfriar.
A voz dela estava carregada de tristeza e ao mesmo tempo parecia perdida.
- Eu não consigo pensar em nada agora, mãe. Nem no chá - Flora respondeu sem conseguir encarar sua mãe.
- Você nunca vai me perdoar?
Os olhos de Dona Lídia estavam cheios de lágrimas, que ela recusava derramar, suas mãos tremiam de nervoso e seu coração apertava de arrependimento. Flora serviu o chá em xícara azul, inalou seu cheiro e deu um gole lento permitindo que seu corpo se aquecesse com o calor da bebida.
- Eu não sei mãe, o que você fez foi muito... - largou a xícara e passou as mãos nos cabelos cacheados e despenteados procurando pela melhor palavra - filha da puta - concluiu sem conseguir ser rude.
Lídia ajeitou-se na cadeira, ficando desconfortável com a reação da filha, suspirou e com calma tentou explicar seu lado.
- Eu sei que foi errado, mas na época não pensei assim, eu era muito jovem Flora e ele já era homem feito.
- E por isso achou que seria melhor mentir sobre tudo? Enganar a mim, ao vovô e ao papai?
- Não achei que fosse a melhor opção, mas foi a opção necessária. Eu estava envergonhada e arrependida de ter traído o Manuel.
- E por isso fez ele assumir uma filha que não era dele? O enganou dizendo esperar uma criança dele, enquanto sabia que era de outro. Ele morreu achando que tinha uma filha.
- Ele morreu e viveu feliz por ser seu pai. Você era o maior orgulho dele Flora.
- E ele o meu, fomos pai e filha e isso não posso negar, ele foi tudo para mim, mas mentir para ele, deixar ele viver em uma ilusão, não foi só errado como foi ridículo, burro e egoísta. Ele sempre fez de tudo para manter essa casa em pé, mesmo sendo nova na época eu lembro do quanto ele trabalhou para por comida na mesa, e eu sei que os sonhos dele foram destruídos, ele nunca começou a faculdade, ele nunca viu a mulher que amava entrar de branco na igreja ele nunca viu a filha formada, ele viveu e morreu por uma família que não era verdade. E isso foi a coisa mais egoísta que eu já vi alguém fazer.
As palavras faziam força nos ombros da mãe, a empurrando cada vez mais fundo, e ela não aguentou, permitiu que as lágrimas rolassem. Lídia soluçava de tão forte que era seu choro, ela escondia o rosto com as mãos e encolhia o pequeno corpo. Deus sabe como viver mentindo a fez mal, mas chegou uma hora que a mentira já era tão grande que a verdade seria pesada demais, e então ela guardou aquilo para si e remoeu-se todos os dias com a sua escolha errada, se julgou e odiou por fazer aquilo as pessoas mais importantes de sua vida. Aquela mentira a destruiu por anos, a sugou, mas ela achou que valia a pena, pelo sorriso e orgulho que a filha sentia pelo pai e vice-versa, ela achou melhor levar a mentira para o túmulo a deixá-los tristes pela quebra de laços.
Mas a verdade bate à porta, a verdade sempre bate à porta.
Flora sentia-se mal ao ver a mãe naquele estado, mas a raiva que ela sentia não deixava tocar a mulher despedaçada a sua frente.
- Tome um chá, e descanse - ela disse a mãe - seu erro já foi feito, não há mais voltas, não tem motivo para chorar dessa forma.
Flora costumava ser doce, a pessoa mais gentil que Lídia e Manuel puderam criar, mas quando estava magoada ela era fria e espinhenta.
Lídia aos poucos acalmou-se e bebeu o chá ao lado da filha sem dizer mais nenhuma palavra. As duas terminaram seus chás e foram para seus quartos, Lídia de coração na mão e Flora despedaçado. Naquela noite nenhuma delas foi capaz de dormir, uma por causa do medo de perder a filha para sempre e a outra tentando entender o pequeno furacão que estava desestabilizando sua vida.
***
Oi margaridas!
Como vocês estão?Esse livro é muito especial pra mim, a história e a mensagem que quero passar através dele é muito importante, eu espero que gostem e que se apaixonem pela Flora e entendam a Lídia.
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Até domingo 💛
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Jardim de Margaridas
Ficción GeneralE se de repente sua vida é uma teia de mentiras e sua única certeza é que as margaridas te entendem? Flora descobre que sua mãe mentiu por 23 anos. Indignada, confusa e com raiva se vê presa em situações sufocantes, crises existenciais e em busca de...