- "Fulana,
Davam 14h, eu tive medo. Eu a vi e, querendo beijá-la, senti medo e borboletas no estômago, borboletas no estômago e medo. Enquanto a olhava, tirei um raio-x de mim: destacam-se: o coração, ardentemente no lugar; respiração, na ocasião, estava insuficientemente no lugar. Quando, porém, tudo em mim já se conservava cômodo, um frevo agudo seguia bailando pelo que sou e pareço. Que o diga o tilintar dos meus dentes! Só não decifrei o porquê, ainda. Se me for dado presumir, eis que digo ser o amor."
- Perfeito. Perfeito, mãe! Tirando a parte das "borboletas no estômago", que achei careta.
- Eu também. - ela riu-se. - Da forma que escrevi, qualquer dessas jovenzinhas pode ser a destinatária.
- Qualquer, não, mãe, quaisquer. No plural. Eu só não entendi o que a senhora quis dizer com medo, mãe...
- Ah, meu filho! Os homens, quando vão falar com uma mulher, exalam confiança, confiança demais, exagerada.
- Ué, e não é bom ter confiança?
- É claro que sim. Mas é necessário também deixar-se ver algum receio, um medo.
- Medo de que, por exemplo?
- Medo de perder o olhar dela, o sorriso dela na memória enquanto poderia ter tudo isso bem na sua frente, e com mais um detalhe: o cheiro dela. E aí, convenci?
- Convenceu, mãe. Ponha isso na carta!
- Não, isso você dirá. E não vai esquecer de mudar a hora e o nome de acordo com os de cada esbarrão.
- Encontro, mãe, encontro.
- Está bem.
Eram 2005, quando o terceiro milênio rompia com tudo pela indústria. Dióxido em vez de oxigênio. Nada oxida, tudo é tóxico. Mas que isso importava? Até um ano atrás, menos que nada. O trabalho exponencialmente produtivo eu já sabia que avultava o ego, porém, que era necessário eu não sabia.
Alerta vermelho: o que se segue nada tem a ver com trabalho.
Em Maceió.
Minha mãe e eu, eu e minha mãe passamos a habitar aquele casarão. Imenso luxo que herdamos a dilapidar, o que, para mim, seria como gastar ponta de grafite, ou isso ou comer. Tarefa vã, pois era impossível duas pessoas gastarem tanto dinheiro. Pelo menos foi o que meu tio materno disse quando passou toda a sua fortuna a nós, por escrito e em vida. Foi exímio em contrair riqueza enquanto advogado.
Com efeito, acho que só sobraríamos nós mesmos: não sabia nem nunca soube de ninguém mais. Mas, enfim, em horas como essa, havia de aparecer um espertalhão de luto.
Algumas observações: quando eu era pobre, pensava que toda pessoa rica fizesse academia diariamente, em diapasão com rigorosa dieta vegana; mulheres formassem-se em curso de balé que praticavam desde a infância; homens curtissem uma natação semanal e jogassem tênis ou golf, uma vez que desse no mês, revezando o trabalho executivo com a melhor ou a segunda melhor posição nos jogos.
Porém, eis que eu existia. Estava rico, e, no máximo, jogava videogame e escrevia para as garotas com as quais eu quisesse ficar. Às vezes, quando eu estava ocupado com o videogame, minha mãe quebrava esse galho entre milhares de outros. Bem, não pensei que eu fosse mudar do dia para noite só porque fiquei rico, mas achei que o tempo cuidaria de me customizar.
Para todos os efeitos, senti que estava demorando demais.
- Mãe, cadê meu sanduíche?
Minha mãe estava demorando demais para fazer o sanduíche. Um pão, uma fatia de queijo e outra de presunto? A menor porção de tempo já seria suficiente. Ainda por cima, estava morrendo de fome!
- Ah! Eu mesmo vou buscar.
Estranho não encontrar minha mãe na cozinha... Onde mais ela guardaria alimentos?
A fome era que não podia mais esperar. Preparei o sanduíche em tempo recorde, tal que nem deu tempo calculá-lo. Eu não era de lavar as mãos sempre que comia, nem antes de comer, mas escutei vozes lá fora e a pia ficava abaixo da janela. Podia ser minha mãe. Pela janela olhei e vi uma garota daquelas, sabe? pegáveis. Vi-la uma feita quando eu estava no trabalho. Lá era homem sério, de negócios. Mas sabia que se a visse outra vez, eu a cantaria, ou seja, tomaria outros rumos a tratativa. Então, vendo-a passar, não hesitei. E mais com roupa de atleta, suadinha e despojada... Que tudo!
- Onde estão minhas cartas?!
Empunhei quatro delas e saí. A moça, só poderia alcançá-la a bons cem metros na velocidade em que ia. Dada a largada, corri, corri, corri e cansei. Não fazia o tipo atleta, sim. E por ironia, ela ainda montou numa bicicleta e deu no pé. Não a chamei para não deixar escapar a imagem de que eu, literalmente, havia corrido atrás dela. Seria um pecado carnal, talvez não para o amor, mas, sem dúvida, para o relacionamento efêmero e corpóreo que procurava. Seria desencantador.
Bem não revolvi para o sentido de casa, uma dondoquinha assomou no canteiro da estrada, e sabe o que mais? acenando para mim. Eu a vira outros dias com a cadela de sempre, ora sobraçando-a, ora não, mas sempre com ela. Pior é que eu tinha um tão inevitável conceito de chatice sobre as dondocas que, não me tivesse já feito gesto de aceno, eu hesitaria em ter com ela. Já era, fui pegá-la. Daquela vez, não deixei uma carta sequer, rápido que foi e insípido.
Para acabar de convalidar a ideia que lhe conservava, depois que nos beijamos, ela despediu-se em francês, mal assim:
- Au revoir!
Se ao menos tivesse dito um "monsieur" no final, eu repensaria, por causa do biquinho... mas não disse.
Se, contudo, tivesse sido verdadeiramente bom, eu não adverti-lo-ia de que o lance de eu não lavar as mãos antes de comer nem sempre é verdade. "Para criar imunidade!", meu pai, se estivesse vivo, diria a respeito. Jeito paternal e divertido de promover o anúncio anti-higiênico e ganhar o meu aval de criança. Saudade dele... isso sim.
Voltei para casa. E minha mãe, era com uma carteira que ela conversava na porta. Podia ser nova ou ser velha; coberta como tal, eu nunca descobriria. Certa oportunidade, jogando eu meu videogame, perguntei a minha mãe, que passava, sobre ela, juro que despretensiosamente. A tal pesar, perscrutei minha mãe gratuitamente.
- Filho - ela disse -, quer um sanduíche?
- Quero, por favor. - Antes que ela se perdesse por trás dos eletrodomésticos da cozinha, perguntei-lhe: Mãe, por acaso, recebeu alguma carta?
- Eu? Não. Por que pergunta?
- Vi a senhora conversando com um carteiro e...
- Ah, eu fui só pegar um documento desses que comprovam que nós somos herdeiros de seu tio. Espero mesmo que esse tenha sido o último!
Pelo correio?..., pensei.
Foi-se a conversa, senão eu poderia perder a missão, aí reiniciar não seria fácil, era nível hard.
Minha mãe, por incrível que pareça - porque vivia fazendo dieta (ela, sim, sabia ser rica!) - lanchou meu sanduíche. Algo não estava bem; ela cuidou para que eu não notasse, mas falhou.
- Mãe?...
- Ai, filho... Depois a gente conversa. - retirou-se.
- Mãe!...
Estranho... Ela nunca comia essas coisas... Eu sabia, pois sempre fomos nós dois ali, mais ninguém. Do oco da minha inventividade, cogitei: será que minha mãe está querendo alguém com quem dividir o outro lado da cama?...
- Quantos anos mesmo do pai?
- Ah, cinco anos já que ele juntou-se diante de Deus. - falou, abocanhou o sanduba e vi-lhes relaxar os ombros.
Ao videogame, o dia e a noite até se confundiam, depressa que alternavam. Novo dia raiou. Era domingo. Então, entre golf e tênis, eu escolhi natação. Estava bom assim. Por sua vez, minha mãe escolheu sentar e assistir, a que não sei. A piscina era de casa mesmo, daí eu restaria à vontade para o banho.
- Três e... já! - mergulhei.
Foi questão de segundos para a campainha tocar. Via-se da piscina quem a acionasse.
- Pois não?
- Oi, eu sou Edson, seu vizinho. Sei que faz poucos dias que está morando por aqui. Aí, enfim, vim convidá-lo para uma partida de tênis. Topa?
Por não saber dizer não, disse sim. Fui-me esbagaçar no tênis. Oxalá!
Na condução até lá pouco conversamos.
- Qual o seu nome, cara? Desculpe, eu nem perguntei. - cuidou Edson.
- Meu nome é...
- Eu já disse o meu, não foi?
-Não, não lembro, perdão.
- É Edson, vem de Edillson em espanhol, com dois eles. Como vim ainda bebê para o Brasil, fui naturalizado como Edson. E o seu?
- Enrico.
O certo era Jorginho, mas eu tive de improvisar um nome de play boy.
Chegamos na quadra em que jogaríamos tênis. Isto, jogaríamos. Fora do carro, em riste, senti uma espetada na altura do rim esquerdo. O tal Edson surpreendeu.
- Passa relógio, óculos, sapato e pulseira, passa tudo.
- Edson?
- Passa logo, anda!
- Sério?
- Aí, meu irmão, parece que estou brincando? - trouxe a faca à vista.
- Não.
Entreguei o que possuía. Ele foi-se correndo; eu, tremendo. Também pudera! Levar utensílios valiosos para um jogo?... Dei mole para um trombadinha.
- Depois dessa, bateu fome.
Estava tão surpreso com a situação recente que não podia observar nada do bairro novo no caminho. Queria chegar em casa, só isso. E cheguei. Na porta, era com o carteira que minha mãe conversava novamente. Minha mãe não estranharia o fato de eu estar descalço porque era normal no tempo de pobreza que andasse assim, mas já com o carteiro era diferente, não lhe causaria boa impressão. Por bem, escondi-me detrás dos arbustos da varanda até que ele fosse embora. Mas ainda peguei o finalzinho da conversa.
- Então é isso, D. Ana, vou indo que ainda há muitas cartinhas como essa - apontava ele para a que minha mãe trazia consigo - para entregar. Ah, antes, vale o conselho: a senhora e seu filho tomem o maior cuidado com uns trombadinhas que de vez em quando rompem os portões e pegam o bom, se é que me entende.
- O bom?
- É, relógio, colar, coisas de valor.
- Pois fique tranquila. Eu mal saio de casa a não ser para receber correspondências. E quanto ao meu filho, ele é inteligente demais para um trombadinha afugentá-lo. Deixe estar! Obrigado.
O carteiro se ia.
- Mãe, mãe - em tom de sussurro.
- Filho? Onde você está?
- Aqui detrás dos arbustos. A senhora não vai acreditar.
- O que houve?
- Eu fui assaltado por um trombadinha.
- O quê? Como? Quando? Onde? E você está bem?
- Estou, mãe, calma. - Sentiu-se um silêncio breve. - Mãe...
- Fale!
- A senhora acha mesmo que sou inteligente?
- Bem... não. Eu só estava pintando bem a sua figura para a moça.
- Quê?! - atravessei os arbustos. - É uma mulher que lhe entrega correspondências? Deve ser uma velha, pela voz rouca.
- Posso saber que idade tem uma velha para você?
- Cinquentinha...?
- Como é que é, seu...
- Mas a voz da senhora nem é rouca!
Ela estapeou-me, rimos; adentramos em casa.
- Mãe, são documentos que atestam nossa herança aí nessa carta?
- Sim, mas depois vemos isso. - ela tresvariou. - Faço questão de ler cada linha e entrelinha com você, mas só depois. Suco e sanduíche você quer?
- Não. Hoje jantaremos fora, jantaremos algo de fidalgo.
- Nossa!...
- Estando, todavia, liberados o ketchup e a maionese, caso eventuais dissabores precisem ser neutralizados.
Quedava a noite a uma faixa de 18h. Dali a uma e meia partimos ao restaurante, num quadriciclo. Afinal, onde jantaríamos ficava à beira-mar.
- Chegamos, mãe. É francês, portanto mantenha um biquinho para falar.
- É sério? Assim? - ela ensaiou.
- Sim, como que beijasse a tampa do sanitário, com nojinho. - ri-me.
- Eca! Vire essa boca para lá!
Saiu-me um piparote no capricho.
- Ai! Está cada vez mais forte isso!
Passos adiante.
- Afinal, esse é o nome do restaurante chik? Café?
- Ele é chik na pronúncia, mãe, diz-se "cafê".
- Salame também é chik, diz-se "salamê". - ela ironizou.
-Vamos entrar.
- ..."Hamburguê... "Sorvetê"...
Quando já fazia tempo sentados - pois fosse elegante esperar à mesa, havíamos cumprido -, pedimos.
- Por gentileza, o cardápio. - tive com o garçom.
- Aqui está, senhor.
- Enfim, vamos querer o que for mais tradicional da casa.
- Está bem, é escargot.
- Como se pronuncia em francês?
- Escargot mesmo, timbre fechado no "o" e elide-se o "t".
- Eu perguntei em português, o senhor, por favor, também responda em português. Mas vá, vá!
Na ocasião em que o prato foi servido, para se ter uma ideia, completava duas horas a nossa estadia.
- Caracol? - pestanejou minha mãe, dirigindo-se ao garçom. - Você acha que vou comer isso?
- Pode ir, muito obrigado. - dispensei-o da bronca.
- Mãe, ao menos vamos provar.
Provamos: um horror! Ei-lo consenso entre nós dois.
- Agora eu não seguro: garçom!
- Tudo está a gosto? - perquiriu ele.
- É claro, melhor que isso só remédio! - esbravejou mamãe.
- Mamãe, biquinho, digo, compostura! E biquinho! Mas, de fato, a senhora está certa.
- Meu filho, sem dúvida, poliplex com farinha láctea é mais gostoso.
Nesse átimo, percebi determinada moça, atendente, que olhava para mim; não discriminei, porém, se a conhecia. Se atingia a média? Bom, à noite todo santo ajuda e eu era homem despreocupado em terra nova. Tanto que fui assaltado.
- Mãe, vou à toilette; peça algo para comermos, ainda que só molho, estou faminto.
Fui-me dar a conhecer por alguém, casualmente lá no balcão de atendimento. Sentei-me no seu extremo esquerdo, para mim. Verguei-me a frente para o ultraje fatal. Um olhar meu descerrado guardaria o ensejo de entregar à balconista uma carta no dia seguinte, se lhe reagisse bem. A mesma cuidava das prateleiras ao que me notou.
- O senhor deseja algo para beber?
- Não bebo.
- Ah...
- Sozinho, não sozinho.
- Por isso está acompanhado. - apontou para minha acompanhante, à mesa.
- Minha mãe não bebe.
- Ah, eu também não. - ela falou então com ar de quem não imaginava que eu estivesse ali com minha mãe e de quem nem me conjugara à imagem dela. Lembrava mais a feição de meu pai.
- Eu... também não bebo. - fingi irracionalmente.
- Você pode tomar água. Não está com sede? Tomemos água você e eu. - ela investiu.
- Ótimo!
Serviu-nos água, digo, l'eau minérale. Eu pesquisara o mínimo de tradução, do qual só restava memorado mesmo a água.
- Isso, l'eau minérale... - gesticulou a garçonete, se-xy-mente. Ao primeiro gole, dedilhei o custo e lhe paguei. Mais para a esquerda foi por onde ela deixou caí-lo. Quase intuitivamente, pus-me ajudando-a. Agachados, eu já meio corpo a dentro do balcão, achei-me ardendo de desejo por ela - sim, porque uma loira estava diante de mim, fitando-me, e eu, não me jogaria fora. De um clichê miserável, pegamos também juntos o dinheiro. Ela beijou-me.
- Por conta da casa. - disse, arfando.
Beijei-a agora eu.
- Melhor, por minha conta. - ela repensou.
- Pode me ajudar a alocar esses vinhos. - disse-lhe uma mulher que trazia garrafas da bebida, saída de uma portela contígua.
- Claro.
- Aqui está o dinheiro pela água. - eu desconversei.
Levantamos, ela mais depressa que eu para ajudar a outra dama. Lindas ambas! Mas o que vale é o coração. Ó Deus, é pedir muito o das duas? A segunda sequer eu notei ao evadir.
Devaneio.
- Psiu! Filho! - D. Ana chamou por mim, em falsete.
- Oi, mãe.
- Vá ali pegar os pasteis que pedi.
- Pasteis franceses?
- Franceses, ingleses... o que for, é lá fora. - mirou um trailer na calçada em frente.
- Valha-nos, pai! Temos que sair daqui! - puxei-a pelo braço, dado ao meu.
Saímos com tão dramático empenho do restaurante chick para o trailer que um funcionário nos seguiu até a porta naturalmente.
- Passa tudo...? - leu D. Ana na fachada do trailer, do outro lado da rua.
- Você prepara uns pasteis para nós, por favor? - pedi, ali de perto.
- Claro - lá do interior da 'lata velha' respondeu uma mulher que trazia uma criança em seu colo, supostamente filho seu. - Mas quantos?
- Vai fazendo. - mainha replicou.
- Que anjinho mais lindo! - eu disse, mimoso, em relação ao rapazinho.
Na mesa, minutos depois, mainha reclamou: - Ai que fome!
A mulher, ao vir servir, sorriu e disse: - Eu fiz uns trinta pasteis.
- Muito bem. - tripudiei - Tem um cheirinho bom!
- Aí, valeu! - agradeceu a mesma.
- Que idade seu filho tem? - perquiriu D. Ana, mas não obteve resposta, daí foi abocanhar metade de um pastel.
Mas eu insisti: - Creio que esta indagação você possa responder: por que o nome "Passa tudo" na fachada do trailer?
A criança, que se encontrava no endógeno do trailer, fabulosamente, nessa hora assomou detrás de minha mãe com um canivete contra si, dizendo: - Passa tudo!
- Ah... - lamuriamos os dois.
- Tenho quatro aninhos - a criança revelou, ilustrando com os dedos.
Assim foi nossa noite. Uma tragédia divertida!
Na mesma ocasião, era vigiado e não sabia. Uma única dica: tem TPM, e não era a bela que beijei.
Chegando em casa, vi então cravado no para-brisa do carro um pedaço de papel. Supus ser uma multa, daí o ocultei depressa.
- Mãe! - no ato - Está com fome?
- Quê?!
- Só zoando!
Só quando ela penetrara a porta de entrada reparei o que continha o papel: "Está me devendo!".
Um coma lunar padeceu a noite na imensa negritude fria, isto é, dormimos.
- Prontinho, escargot. - ela emendou, ao novo dia, e gargalhou assim estrepitosamente, posto que era sanduíche que servia.
Cambaleante de sono ainda, pensei: não seriam dentes demais para a pequena boca? Que, por sinal, nem fechava, largo era o riso revelado. Ora, o doce que dá prazer é o mesmo que dá lombrigas...
Por isso não, pensava mas comia, se não se importa. Mal sabia eu que toda essa alegria da D. Ana saltara de uma folha de papel em que instava assinado: "com carinho", para ela. A mesma folha de papel endereçada que ela outrora me cuidou para não ler; afirmou que ali haviam documentos comprobatórios da herança... mas eu seguia sem entender.
De pé fiquei em um minuto, sentado noutros dois para então começar a partida; porém, eis que não pude achar o FIFA e queria jogá-lo. Sem maiores questões, cuidei em ir comprar um novo, de posse da chave que abriu o carro com o qual parti: uma BMW conversível.
À locadora do Félix, meu irmão de pobreza. No cafundó.
- Fala, Jorge! Aqui não tem nada a sua altura, irmão, pelo amor! - ele alarmou.
- Que conversa é essa? - Desci do carro. - Somos irmãos, cara. - Abracei-o.
- É, mas aí - olhando para os meus pés -, você não usa mais sandália igual a minha nem anda mais a pé como eu.
- Nem você andará muito em breve.
- Deixe dessa, cara, que eu fico todo arrepiado!
- Cadê sua mulher?
- Está lá dentro, vamos entrar. - Dirigindo-se aos poucos clientes que havia, falou: - Escolham à vontade, a gente acerta depois.
Havia uma entrada lateral no interior da locadora que dava acesso ao casebre deles, ou antes, à vila da qual eles eram donos e em que moravam e na qual eu morei, durante muito tempo com estadia franca. Nem só por isso, eu devia muito ao Félix e sua esposa. Durante o comércio, uma pilha de cd's e dvd's piratas obstruía a passagem e, no entanto, bem lhe servia de porta. Três ou quatro quartinhos de cada lado, no máximo, compunham o corredor, incluindo o de Félix.
Passamos por um dos moradores, conhecido meu.
- Oi, Rico! Tudo bem? - eu disse.
- Fufufu, fufufu! - respondeu ele, que, não lembrei a tempo, era mudo.
- Esse é o Fu, o outro é o Rico. - explicou Félix.
Eram gêmeos e há muito não os via; na duração daqueles dias somaram-se ao Fu, presumo sobre o Rico também, que não se fazia presente, tanto mais esquisitice como feiura.
- Ah, tchau, Fu! - corrigi, desajeitado.
- Cheguei, minha deusa Afrodite. - Félix entoou ao destampar em casa.
Afrodite, de fato, é nome de deusa, mas pouco provavelmente corresponderia àquela de então, já porque a imagem do Félix não o recomendava nem obedecia a mais que o mínimo de beleza.
- Oi, amor. - ela apareceu, respondendo.
E se quer saber, a mesma de algum modo sorriu sem dentes. Desfecho pior não haveria a uma história, fosse um.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Um Algo a Mais
Storie d'amoreApaixonado pelas mulheres de sua vida, seu nome é Jorge. Hoje é rico, mas já foi pobre. Órfão de pai, sua mãe o ama e cuida na base de sanduíches, de dia como à noite. Vive a jogar videogame faça chuva ou sol, que é em casa mesmo. Antes, não: chuves...