WORKAHOLIC
Pessoas morrem a todo momento. A Organização das Nações Unidas estima que a cada minuto em média 102 pessoas deixam de existir. Isso é natural, principalmente quando se está dentro de um hospital, ser médico - intensivista - transforma seu convívio com a morte em uma relação intimista, ainda assim, você - médico - nunca espera morrer. Não na flor da idade, antes de construir uma família e ter aproveitado sua longeva vida. Médico nenhum espera morrer no meio do plantão pelo simples fato de estar exausto. Mas, eu morri assim.
Entenda que na poesia da morte existe um momento sagrado de epifania, quando a dor finda e a sua medula, para afagar a tristeza do próprio óbito, envia pequenas mensagens para o córtex e - segundo a comunidade da ciência neurológica - seu cérebro te transporta por sete minutos para o mundo dos sonhos, o mundo em que suas memórias primordiais foram armazenadas e você pode rever toda a sua vida. Eu estou em um desses momentos, fora do meu próprio corpo, observando o corpo médico do Hospital Universitário em choque enquanto meu melhor amigo tenta me reanimar a todo custo, mas é impossível, porque eu já estou morto. Causa Mortis: Exaustão. Momento do Óbito: 02:50 da manhã, dez minutos antes do meu plantão chegar ao fim, dia 14 de fevereiro, Valentine's Day. As flores ficaram dentro do carro e provavelmente vão murchar sem que eu possa entregá-las, ao que parece eu não tive tempo mais uma vez, pela última vez.
Por mais tempo do que eu posso me lembrar, salvei vidas. Salvei mais vidas do que qualquer um e me envaideci por isso, não nego. Meu nome se tornou conhecido no campo da medicina e feitos ditos impossíveis foram guardados pelo meu nome em horas infinitas de cirurgias de emergência, porque - para um intensivista - não existe hora marcada, nossos pacientes não podem se dar ao luxo de esperar. Mas, Min Yoongi, como qualquer outro ser humano do mundo deixou de respirar, virou matéria orgânica pura e simples, por mais que Hoseok e Meredith continuassem ao redor da minha maca na esperança de me ressuscitar.
Hoseok, médico do trauma e também meu melhor amigo, ele estava preocupado comigo há dias, porque meus braços estavam formigando e eu não conseguia dormir há pelo menos uma semana. Eu o ignorei completamente, porque a minha parca percepção não me deixava aderir a condição de paciente, oras, médicos não adoecem. Meu amigo me pediu para fazer uma tomografia e foi categoricamente ignorado, eu estava em um longo processo de ignorá-lo, não tinha mais tempo para o meu único amigo. Ter amigos é bom, mas salvar pessoas em estado de alto risco é preferencial, certo?
Bem, quando você não morre de tanto trabalhar, sim. Lembro da época de graduação, eu já era um nerd insuportável naquele tempo, eu sabia de tudo e fazia questão de deixar claro que meus professores eram um mero enfeite naquele momento de transitoriedade, eu era mal-humorado demais para manter pessoas por perto. Eu não fiz por merecer Hoseok, mas ele continuou sendo o meu amigo, meu único amigo, mas ultimamente ele estava se afastando, cansando aos poucos. Hobi se casou, eu fui o padrinho, mas cheguei atrasado no casamento, depois da noiva para ser específico. Eu fui padrinho do filhinho dele, eu deveria ter assistido o parto, mas só cheguei três horas depois do nascimento, mesmo trabalhando no mesmo hospital, mas quando meu afilhado sofreu um choque anafilático e Hoseok tremia a ponto de não conseguir entubá-lo, eu o salvei. Não salvei Jung Do Han porque era filho do meu melhor amigo, no entanto, eu o salvei porque as pessoas me procuram quando estão à beira da morte.
Aos poucos o choro de Jung passou a ser copioso em demasia para ele continuar me reanimando, Meredith tomou seu lugar diante do desfibrilador. Enquanto se revezavam para descarregar a eletricidade em meu coração a sala foi esvaziando aos poucos, todos perdendo a esperança, todos menos Meredith, porque ela é a mulher mais incrível que eu conheci durante a vida, eu queria falar isso para ela hoje durante um café na cantina do hospital. Eu pretendia dar a ela aquelas flores deixadas no banco de trás do carro, mas não houve tempo, nunca mais haveria.
Meredith e eu nos conhecemos em seu primeiro ano de residência, ela era a única entre todos aqueles calouros que não parecia deslumbrada com a possibilidade de trabalhar comigo e esse foi o fator decisivo para que eu me apaixonasse irrevogavelmente por ela. Durante três anos eu tentei me aproximar e sempre que eu conseguia um singelo olhar da bela ocidental meu coração começava a sofrer de arritmia sem razão plausível. Eu não sei ao certo quando meu encantamento virou paixão e depois o mais sincero amor, mas me dei conta desse pequeno incidente quando via as horas passarem na sala de cirurgia e tudo em que eu conseguia pensar eram os minutos que faltavam para Meredith abaixar a máscara e sorrir, sorrir o sorriso mais lindo do mundo. Embora a suavidade em seu rosto estivesse presente até nos momentos de grande aflição, sua firmeza se esvaia aos poucos, sendo substituída pela dor agonizante da minha partida, eu estava no meu quinto minuto de óbito e me restava muito para recordar em tão pouco tempo. Fui acometido por aquele momento de epifania que relatei no início, tomei ciência de toda a minha solidão. Eu nunca fui um homem carente, mas nunca fui corajoso o bastante para permitir me apaixonar por alguém, sempre repeli com ardor qualquer potencial romance e me acostumei com a solidão sem perceber o quanto eu estive infeliz.
Eu não queria morrer naquele momento, em que eu estava prestes a me declarar para a única mulher que amei. Não queria morrer uma noite antes da minha folga, quando finalmente poderia sair para pescar com Hoseok. Não queria morrer um mês antes das minhas férias, quando eu poderia levar Do Han e seu amigo canino para um parque. As pessoas não querem - não esperam - morrer de forma geral, nós costumamos esquecer que não há nada mais natural que a morte e nada pode nos tornar mais consciente sobre o nossas oportunidades de vida perdidas do que ela. Seres-humanos são um conglomerado de coisas não feitas e tempo desperdiçado, raramente nos damos conta disso e quando percebemos costuma ser tarde demais.
Foi humano, demasiadamente humano, desejar uma segunda oportunidade para a mudança quando Hoseok afastou o desfibrilador das mãos da mulher diante do meu corpo magro e frio. O monitor cardíaco exibia uma linha reta demonstrando a assistolia enquanto Meredith e Hoseok choravam e eu sentia um distanciamento considerável daquela realidade, que talvez só existisse em minha mente.
Um momento de confusão, que deveria ser meu último, foi marcado pelo compasso de um bip fraco e desregulado. Eu não via mais o que estava ao meu redor, no entanto eu era perfeitamente capaz de ouvir um choro aliviado entre o ritmo alto das batidas do meu coração, eu sabia que estava de volta, meu corpo sabia. Depois de sete minutos fui presenteado com uma nova vida em que as flores não murchariam, em que eu sairia para pescar com meu melhor amigo e levaria meu afilhado para brincar no parque, talvez fosse a minha última chance para aproveitar. Aproveitaria cada batida do meu coração.
FIM.
Produzido por Eloiza_Gomes
Revisado por LuaInAHoodie
Créditos de arte para poesiadasflores e shyminb.
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Loveless
Fanfiction"Seja você mesmo o amor da sua vida!" 14 de fevereiro. Valentine's Day, ou somente Dia dos Namorados. Mas, para Namjoon, Seokjin, Yoongi, Hoseok, Jimin, Taehyung e Jungkook, essa data será um tanto quanto peculiar... || BTS x OC || Livro de OS || En...