prólogo

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— John Watson. — Ouvi e respirei fundo antes de me levantar. Fiz um último ajuste nas fitas de cetim que envolviam meus tornozelos.

Elas eram como as artérias das minhas pernas. Dei um passo: lembrei dos olhos da minha mãe cheios de expectativa. Mais um passo: todas as bolhas e calos que me levaram até ali. Outro passo dado e minha memória foi invadida pelas horas sem fim diante da barra, em frente ao espelho, as milhares de repetições dos movimentos. Outro passo: o corpo levado ao limite em busca da perfeição.

O caminho até ali não foi fácil. E não estava pensando na distância que percorria até o palco. Como um filme mental, revi as noites em que chorei pensando em desistir, enquanto ouvia o barulho da máquina de costura dela fazer hora extra durante as madrugadas, a fim de que eu pudesse dançar.

Minha mãe dizia sempre e repetia todos os dias e todas as noites: “Não, você não pode parar. Um bailarino
de verdade não desiste nunca... Você tem que ser perfeito e brilhar”.

No fundo, lá no fundo —
e isso eu tentava não admitir nem para mim mesmo —, era a ela quem eu queria agradar em primeiro
lugar. Era para ela que eu dançaria ali, naquele palco, e não apenas para os jurados.

Parei, sentindo o coração na ponta dos pés. Inspirei o ar denso do teatro, ele pareceu quente e difícil de tragar. De olhos fechados, senti a alma transpirar através da pele. Abri os olhos e notei que alguns dos jurados olhavam para mim, outros ainda viravam as folhas de papel.

“Você tem que ser perfeito”, a voz da minha mãe vibrou dentro de mim.
O silêncio do teatro era ecoado por sons humanos: um pigarrear, o dobrar de folhas e a minha respiração sofrida que, tinha certeza, era ouvida do lado de fora.

Tentava me convencer de que só o fato de estar entre os trinta finalistas já significava tudo. Essa mania meio estranha que temos de buscar consolo com a possível derrota, antes mesmo de ela acontecer.

Foram mais de dez mil inscritos espalhados pelo mundo, na luta por quinze vagas.

Quinze sortudos.

Quinze pessoas que ganhariam o mundo.

Quinze é muito?

Parecia tão pouco.

Parecia tudo.

A primeira fase foi feita através de um DVD apresentando uma variação livre de uma lista de clássicos pré selecionados. Enviei minha gravação há seis meses para a Inglaterra. Então, restaram mil e quinhentos bailarinos.

Esse ano, a fase final acontecia no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. A cada dois anos, a escola da Academia de Ballet de Londres elegia um palco do mundo para receber a última fase do seu maior prêmio.

Eu sabia que o fato de estar em casa, no Rio de Janeiro, não significava nada em cima daquele palco, não ajudaria a decidir quem ganharia a chance de andar sobre pontas para sempre. O que, com certeza, uma bolsa de estudo, durante dois anos, em uma das escolas de balé mais importantes do mundo, poderia
tornar realidade.

Só quem tem o balé injetado no sangue é que sabe o que isso significa.

Para mim, o balé sempre foi meu oxigênio.

Com quatro anos calcei minha primeira sapatilha.

Com seis, fui aceito na melhor e mais rígida escola do Rio de Janeiro — na época fui considerado um bailarino prodígio.

Com oito, vesti a peça mais importante do mundo.

Durante anos, dancei de seis a oito horas por dia.

Eram quinze sapatilhas gastas por mês. Dezenas de meias, collants, grampos; agulhas, linhas, fitas.

Centenas de ajustes nas mesmas sapatilhas, que eram mais comuns do que escova e pasta de dentes.

Todo o meu mundo era o balé e agora a sobrevivência dele dependia de três fases e nove jurados.

Quatro deles foram ídolos do balé mundial, além de serem os meus. Os outros cinco eram do corpo diretivo da escola de Londres.

Nove pessoas e dezoito pares de olhos que julgavam arte, adequação física, coragem e individualidade esperavam uma resposta criativa e sensível à música: a compreensão clara na comunicação de diferentes dinâmicas de movimento. Queriam encontrar facilidade técnica, controle e
coordenação.

Uma apresentação de dança clássica, uma contemporânea e uma variação livre.

Essa era a fase final e a minha vida estava na mão de todos esses números.

— John Watson — um dos jurados me chamou. — Você dançará agora uma Variação de Gamzatti, certo?

— Sim.

— Está pronto?

— Estou. — Fechei os olhos e ouvi os primeiros acordes da música preencher o teatro.

senhor florimundo - johnlock Onde histórias criam vida. Descubra agora