Zoé

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Ele aproveitava o Carnaval para colocar o serviço da gráfica em dia. Sempre. Todos os anos. O Carnaval era uma chance de ouro para adiantar o trabalho sem que entrassem pedidos novos. O que o animava era pensar que os clientes ficariam muito satisfeitos quando ele ligasse na Quarta-Feira de Cinzas dizendo que a entrega seria adiantada. Fidelizar o cliente era a sua cachaça, o seu cigarro, o seu prazer na vida. O barulho da máquina de tipos era incessante durante todo o período de folia. Enquanto as pessoas perdiam seus tempos lá fora, ele atingia o ápice da produtividade.

Zoé observava o marido trabalhar e se perguntava desde quando a vida a dois tinha virado esta sequência de dias sem fim. Dias que se seguiam, mas que pareciam serem sempre o mesmo dia, porque nada de novo lhes acontecia além do temperamento implicante de seu marido, que lhe destemperava toda a vida. "Metódico, Joel virou, com o passar dos anos, um grandessíssimo chato!", pensava a mulher enquanto murmurava mentalmente que seria bem melhor que o marido quebrasse essa rotina amarga que impunha aos dois e lhe desse um pouco de atenção!

Este era o desejo de Zoé, mas na verdade ela já estava convencida de que não poderia haver desatenção maior em um casamento do que este castigo que o trabalho sem folga de Joel impunha aos dois: a maior diversão no Carnaval da mulher era ficar ali, vendo o seu marido sujo de graxa imprimindo papéis. E a máquina impressora até que tinha lá o seu ritmo, mas o compasso estava longe de ser carnavalesco: seu barulho era alto, ríspido, contínuo, a única variação no tom era dada por algumas peças frouxas na máquina velha.

É difícil acreditar que aquele homem envolvente, que ganhou Zoé em uma noite de carnaval, que a fez entrar em um mundo loucamente encantado tenha mudado tanto: "Parece que foi ontem", Zoé pensava.

Cansada de apreciar o vai-e-vem do marido, que nem notava a sua presença, ela resolveu ouvir o velho CD com aquela maldita música daquele maldito dia em que se conheceram: era um jeito de tentar afastar a mágoa por esta vida sem brilho, sem nada, era uma forma de desempoeirar suas memórias de um tempo bom. Hoje era Carnaval, e ela queria brincar de esquecer que seu casamento já havia perdido o sentido: "eram só contas a pagar, brigas a evitar e casa para arrumar".

"Mas quem é você..." Zoé cantarolava a música de Chico já abrindo uma cerveja. "Em pensar que nem da cerveja Joel gostava mais depois que virou carola...é que junto com a cerveja vinham as conversas, as músicas, o namoro, a cama..." A mulher sentia falta disto.

A verdade é que hoje tudo era lamento para Zoé. Do passado só restou mesmo a sua lembrança mofada e o velho CD de MPB que um dia já havia sido romântico, mas que hoje é só triste". Zoé pensava estas coisas e se sentia cada vez mais soterrada pela sua realidade. Resolveu aliviar a dor se preparando para cantar a parte final da música de Carnaval a plenos pulmões. Queria ver também se Joel a ouviria por cima do som ensurdecedor de sua máquina velha:

"Deixa o dia raiar, que hoje eu sou

Da maneira que você me quer.

O que você pedir eu lhe dou,

Seja você quem for,

Seja o que Deus quiser...

Lalaiá lalaiá lalaiá

Lalaiá lalaiá lalaiá..."

"Pior é que o Joel já teve pegada, pelo menos naquele dia de Carnaval em Saquarema ele teve, ele e eu, mascarados... Mas hoje.... Hoje eu acho que não suporto mais aquelas unhas pretas de graxa, gráfico", a tristeza, a esta altura, já era dona da mente de uma Zoé perdida e trôpega entre pensamentos tristes e goles de cerveja.

Joel já havia trabalhado por dez horas seguidas e estava exausto, só pensava em comer algo bem substancioso antes de imprimir mais alguns papéis. Ele veio pedir à mulher a comida. Ela respondeu que já iria atendê-lo. Falou assim, de costas mesmo, enquanto enxugava as lágrimas borradas pelo rímel triste.

E Zoé iria para a cozinha se não tivesse pensado num estalo desses que te fazem ter certeza de que teve uma boa idéia: "Chega, se ao menos Joel tivesse dado um tapinha na minha bunda enquanto pedia a o almoço..."

A verdade, é que qualquer coisa que o marido fizesse naquele dia de Carnaval infeliz, naquele dia em que Zoé não suportou mais a sua vida de rotinas, qualquer coisa seria o ponto final, o estopim, mas Joel nunca soube disto, ele nem viu quando Zoé partiu no Bloco dos Sujos que passava pela rua. A decepção de Zoé era por tudo o que Joel deixou de fazer.

Cansada de nunca ser ela mesma o cigarro, a cachaça, o prazer, o tesão de seu marido, Zoé viu a efêmera emoção ritmada por um surdo, um cavaquinho, alguns tambores e muita gente exalando euforia, bem ali diante de sua porta, e se entregou. Já Joel, bem, Joel fidelizou mais clientes, mas esqueceu de fidelizar a sua própria mulher. Perdeu pra concorrência. 

Garotas IncontáveisWhere stories live. Discover now