Capítulo 2

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Capítulo 2

Melissa pegou o pedaço de teto no chão da sala, que caiu no dia anterior quando fechou a porta com força, e atirou na lata de lixo. É, mais um dia normal, pensou indo à cozinha inspecionar seus armários buscando ingredientes para fazer chá, não achou nada. Pesarosa, colocou a água para ferver decidindo tomar café. Não gostava do sabor, mas dada a sua situação não tinha muitas escolhas.

Seu estômago protestou e ela foi tamborilando a mesa impaciente pela demora da chaleira em aquecer logo. Isto poderia estar sendo diferente, pensou. Se ontem não tivesse tido uma discussão com seu chefe, ao ponto de ele a impedir de levar as sobras dos clientes para seu jantar como sempre fazia, poderia não estar faminta logo pela manhã, cogitando tomar o líquido que mais detestava só para consolar seu estômago.

Claro que não implorou pelas sobras como seu chefe esperou que fizesse, afinal, permanecia certa ao se posicionar sobre o filho dele. Estava farta de vê-lo apalpando funcionárias e clientes sob a observação do pai e o mesmo não falar nada. Não era porque o miúdo tinha síndrome de down que o pai deveria deixá-lo ser mal-educado com as pessoas. Todos deveriam conhecer limites e boas maneiras.

Foi o que falara para o chefe, porém, ele entendeu como se tivesse chamado o filho de retardado, até gritara sobre aquilo e com aquela palavra em específico. O que a deixou indignada e a fez se defender com garras, irritando o senhor de estatura média, corpo rechonchudo e cabelos grisalhos.
Melissa nunca, jamais chamaria alguém de retardado, sendo ela a especialista em estar na pele de quem era descriminada por, simplesmente, existir.

Sacudiu a cabeça revoltada. Perder o jantar por algo que tinha total razão e porque não massageou o ego do chefe concordando com as atitudes decadentes do filho, foi o auge.
Levantou-se para fazer o café, mas assim que levou a boca cuspiu fazendo uma careta. Despejou o líquido na pia de louças e respirou profundamente olhando sua casa de canto a canto.

A habitação era do seu falecido avô, tinha ganhado de herança junto com a camionete Ford que raramente conduzia, pois, se considerava uma mulher de “meios perigosos”. Mas a verdade era que estava endividada com crédito estudantil e, mesmo com dois empregos, não conseguia prover mais que o básico.

Melissa trabalhava de caixa num restaurante requintado, de entregadora numa pizzaria e ia para ambos trabalhos ou da sua bicicleta ou do seu skate. Sentia que estava um pouco adulta para aquilo, mas não era como se tivesse opções. Sua casa precisava de uma remodelação urgente e cada centavo poupado era bem-vindo para aquilo acontecer o mais rápido possível.

O orçamento da construtora era alto e ela já estava a exprimir-se ao máximo para conseguir o valor, tinha inclusive cortado passagens para transportes para acrescentar as poupanças.
Oh vovô, como queria que estivesse aqui! Arrastou o pensamento ao abandonar a cozinha indo ao quarto de banho. Enquanto isso mirou remotamente seu espaço, sem luxos, nada. Apenas dois quartos, uma sala conjugada com a cozinha, uma varanda logo na entrada e um banheiro no fim do corredor no qual ficou trancada por minutos.

Terminou de se vestir e saiu de casa. Trabalhar com entregas não era seu sonho, tinha uma licenciatura em Administração, um mestrado em Relações Públicas e colecionava alguns estágios. Porém, sempre que batia portas nas suas áreas de formação, ou a vaga tinha sido preenchida, ou era “um pouco demais” para o posto ou lhe pediam para mostrar algo que só mulheres da cor dela podiam fazer. A última opção recusava sem hesitar, jamais faria sexo por uma vaga.

Parou no semáforo, já estava empurrando o skate há tempo demais e, embora gostasse de estar entre todos aqueles carros sentindo-se a mulher mais corajosa, sempre apreciava algum descanso nas paragens obrigatórias. Estava ciente que além da coragem, enfrentava um perigo extremo e, naqueles três segundos antes do semáforo abrir, assustou-se com um carro roncando o motor ruidosamente, fazendo-a desequilibrar-se um pouco para o lado.

Cacofonia [EDITANDO]Onde histórias criam vida. Descubra agora