Quando o fim chega sem avisar

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Limpei a garganta para a voz não sair esganiçada e respondi a sua afirmativa na forma de uma pergunta:

— Você vai se casar?

— Vou.

— Contou a ela?

— Sabe que nunca farei isso.

Tornei a limpar a garganta porque a droga da minha voz estava para me trair. Fixei meu olhar nos olhos acinzentados dele, através da tela do celular. Por que ele adorava fazer vídeo-chamada? Por que tinha que colocar aquele par de olhos para me tentar?

— E você está me ligando às três da madrugada para contar que vai se casar. Certo. Então, desta vez, é para valer? — indaguei, desconfiado. Ano passado foi a mesma coisa. A família dele pressionando por uma data no cartório, ele se esquivando, a gente ganhando tempo.

— Vou fazer o pedido no café da manhã.

— Ah! Ela ainda não sabe.

— Não.

Eu o observei dar um trago no cigarro e soprar a fumaça para a noite. Podia imaginar o motivo da sua insônia. Jantaram em um restaurante qualquer. Ela o distraiu com conversas frívolas, enquanto ele pensava em mim. Ele dirigiu até o seu apartamento. Fizeram amor (talvez tenha pensando em mim). Ela adormeceu. Ele não. Fumou dois cigarros. Antes de acender o terceiro, me ligou.

É a previsibilidade que provém dos anos de convivência. Sou a terceira peça dessa relação doentia.

— Talvez, ainda tenha tempo de adiar por mais um ano – arrisquei, evitando por muito tempo os seus olhos. Era comum eu me distrair e me perder na vastidão do seu olhar. Havia nele um vazio, um pedido de socorro constante que só eu enxergava. E bobo do jeito que eu era, tomava para mim esse pedido e tentava resgatá-lo seja lá do que fosse. Me desdobrava, me reinventava, me adaptava. Desejava ser o herói, o salvador. Aquele que daria vida e significado. Que preencheria o vazio que morava no fundo dos seus olhos e traria a felicidade. Mas acabava sempre cansado, nadando pelas beiradas, lutando ingloriamente.

Então, ele se virou para mim. Por detrás da tela luminosa, me encarou de frente, como se estivesse na cama comigo, me desarmando no ato. Os tons de cinza oco e estático me hipnotizando, me fazendo refém. Eu respirando, esperando o chamado, pronto para abrir a porta, como sempre fiz. Ouvi sua respiração profunda, observei quando fechou as pálpebras, e abriu e boca para falar. Meu coração pueril acelerou tão rápido e por um triz eu não me antecipei a sua pergunta. É claro que eu o receberia por algumas horas. Não tinha a menor condição de negar. Ele precisava de mim. Eu, muito mais dele.

No entanto, seus olhos se abriram e pela primeira vez, vi algo diferente. Uma fagulha. Uma esperança. Um oásis. Algo que eu nunca tinha percebido antes. Era novo e parecia genuíno.

Pisquei diante de tal surpresa. O silêncio se desdobrando lentamente entre nós. Ele deu a última tragada no cigarro e segurou a fumaça em seu peito, soltando-a por fim, como se não a quisesse nunca mais por perto.

— Ela está grávida. — Sua voz saiu rouca, baixa e mais doce do que o habitual.

— O q...q...quê? — gaguejei. Só não caí para trás porque estava encostado na cabeceira da cama.

— Vou ser pai.

— Não vai nada! Para com isso! — reagi, pulando da cama. Fugi para a cozinha e empoleirei na banqueta do balcão que divide a sala. Imaginando que aquela barreira pudesse me proteger do novo inimigo.

— Estou falando sério, Bruno. Eu vou ser pai, cara! Ela está grávida de três meses.

Orgulho. Ele soletrou cada palavra com orgulho do seu feitio de macho. Pude pescar uma felicidade contida nos espaços entre as palavras daquela maldita frase. Meu Deus! Como que um ser frágil, ínfimo e que nem tem consciência da sua existência e de um mundo complexo e louco do lado de fora, conseguiu preencher o vazio que eu tanto lutei em preencher?

Adivinha quem vai se casar? --- EM BREVE NA AMAZONOnde histórias criam vida. Descubra agora