Parte 1. Pobres coitadas das condenadas

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A Rapariga sempre esteve no escuro. Sentada. De joelhos ao peito. No escuro. Sempre foi assim. Até que o sempre tornou-se o nunca e as luzes acenderam-se.

Os olhos continuaram fixos no mesmo ponto de sempre; ela não se atreveria a olhar para algum lado no qual não soubesse o que veria. Ficou quieta.

− Levanta-te e anda.

A Rapariga olhou em volta e depois levantou-se, ainda meio atordoada com o que acabara de ouvir já que achava que não havia ninguém no corredor (e realmente não havia).

Olhou para as paredes, mas nada viu senão o branco. Branco. Branco e mais branco.

Olhou para o chão e mas também só viu o branco.

Tentou olhar para o vinco que a parede devia fazer com o teto, mas não viu o teto.

De qualquer forma, começou a andar. Os passos, por mais vazio que fosse o corredor, não ecoavam; não se ouviam, na verdade. Como se ela estivesse a andar em cima do nada... não, parecia que era só o nada que estava lá, sem ninguém a andar por cima dele.

E foi observando as enormes paredes brancas completamente contrastantes com o estreito corredor em si, que nada lhe tinham a oferecer. Tirando uma coisa: as portas pintadas.

Eram largas linhas negras todas retas tirando a circular, ali pintadas na enorme parede branca.

Eram linhas, em cima de linhas, em cima de linhas, mas havia umas que ficavam pela metade, lá em cima.

A rapariga observou atentamente as portas, que por sua vez também pareciam observa-la, como se tivessem olhos (porque se calhar até tinham), olhos bastante atentos à sua presença e que se recusavam a piscar.

Ela aproximou-se da porta de baixo, a que estava à sua frente, e

Sentiu os cabelos que nunca reparou que tinha a serem puxados pela raiz e a sua face a ir de encontro à parede branca. Branca. Branca. E branca. Que de tão branca e tão limpa, ficou suja de vermelho.

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As ondas batem nos cristais. Os cristais batem nas ondas. Ela está dentro das ondas a tentar ir para a superfície.

Quase que se afogou na porta, a coitada da miúda. Olhava para os lados e não via as paredes brancas, só o azul da água invertida.

Ela nadava ao ritmo das algas presas à terra, e dos peixes que só queriam nadar, ou talvez quisessem ir para a superfície com a Rapariga. Nadava com a própria água que também parecia querer ir para a superfície com ela. Mas a água nunca quer ir para a superfície; as ondas são as pobres coitadas das condenadas.

Nadava, lutava, fazia força, mas não conseguia sair do mesmo sítio e os braços já lhe doíam (os da água também), até que finalmente parou de lutar e aceitou a água, que tanto a tinha prendido. Foi para o seu abraço apertado, deixou-se cair no fundo e deixou-se lá ficar... por menos de dois segundos.

De repente viu-se a boiar e no segundo seguinte estava entre as pobres coitadas das condenadas e a areia.

Tossiu até o pulmão lhe chegar perto da garganta e ela ter de o engolir por estar demasiado quente para passar por ali.

Olhou em volta e só viu areia. Branca. Havia paredes. De areia branca.

A praia estava bastante iluminada. O céu brilhava ondulações cristalinas feitas do mais puro cristal, essas que dançavam na sua vastidão azulada do mesmo azul que a água, com as ondulações a ondularem no mesmo ritmo que as da água, com a mesma cristalinidade da água. Até que chegaram as pobres coitadas das condenadas e chão de água levou-a para longe enquanto o teto de água, lhe caia em cima e a cortava como facas de vidro.

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A Rapariga sangrava, transformando a água antes azul e cristalina, em vermelha e cristalina. Estava de olhos fechados, deixando a água expulsá-la para o ar e o ar expulsá-la para a água.

Mas essa expulsão simultânea que nada movia não durou muito, logo a água e vento começaram a empurrar-se, formando uma montanha bastante escorregadia e molhada, que atingiu a Rapariga. Pobre coitada da condenada.

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Tudo mergulhado na mais vasta escuridão, até que a luz apareceu, bastando um pequeno raio para rasgar a Santa tela preta.

Apesar de rasgada a Santa tela preta continuou lá, com a vasta escuridão que lhe restava, obrigando a Rapariga que ainda cheirava a água e areia a acordar com a luz cortante vinda de não sei lá de onde.

Ela levantou-se abruptamente; o chão fazia as costas doerem-lhe.

A Rapariga observou o que conseguiu antes da luz quase a cegar e depois coser o seu rasgo, mas claro, deixando o local completamente iluminado. Tão iluminado que os espelhos em volta agora não passavam de vidro branco. Branco. Branco até de mais.

Olhou para o reflexo e este também olhou para ela; pelo menos desta vez podia ver os olhos de quem a olhava, viu aqueles e mais uns 3 pares, todos olhavam fixamente para a Rapariga enquanto se descolavam do vidro branco, levando-o consigo e deixando grandes e defeituosas marcas no lugar de onde saíram.

Rodearam-na, tentaram tocar-lhe na face mas ela desviou; então todas pararam. A Rapariga observava-as com ansiedade, procurando prever os próximos movimentos delas e encontrando a simples resposta de que não conseguiria; mas a verdade é que conseguiu, só não fez nada para o impedir, o que resultou no pior enjoo da sua vida após ser atirada para um dos vidros brancos, diretamente para a parte emoldurada com linhas largas e negras, todas retas tirando a circular.

A Rapariga das Portas PintadasOnde histórias criam vida. Descubra agora